A cena volta ao México. Trotsky continua a conversa com o jornalista.
-T. Você pode até considerar minhas ações muito cruéis, mas eu não queria apenas disciplina, eu buscava a maior expressão de amor. Sim! Você ouviu bem, amor. O inimigo era um poder fatal. Enquanto eu era um poder que podia punir, mas também podia perdoar.
-F. Queria ser um segundo Deus para os seus soldados?
-T. Segundo? Não, Jacson. Pense grande. Eu precisava substituí-lo. Deus é uma convenção. Ninguém nunca o viu. E eu estava próximo dessas pessoas, no mesmo nível. Era mais fácil acreditar em mim. E acreditaram.
-J. E se virassem as baionetas contra você?
-T. Havia essa possibilidade. No entanto, fizeram o contrário. Mataram nosso inimigo.
-J. Não entendo.
-T. Eu também não entendia. Até que conheci o homem que me explicou.
A cena recua no tempo. Odessa, maio de 1898. Trotsky está na prisão. Um companheiro é jogado brutalmente para dentro da cela. Cai sobre a mesa... ferido... inconsciente. Bronstein, um dos prisioneiros, se aproxima do homem, agasalha sua cabeça ferida com o chapéu. Murmura, - Desgraçados! Pega sua caneca e fica batendo ritmado na mesa. Os colegas timidamente vão se aliando ao toque. Trotsky se dirige à porta, batendo com a caneca e exigindo: - Queremos Trótsky! Trótsky! Trótsky! Trótsky! O murmúrio se transforma cada vez mais em alarido: Trótsky! Trótsky! Os guardas surgem, e como não conseguem controlar os revoltosos, o oficial manda buscar Trótsky. (Nicolai Trótsky – Chefe da Guarda da Prisão de Odessa em 1898) Informa o soldado Demidov ao chefe Trótsky que os prisioneiros parecem cães raivosos. E sincronizados como um relógio!
- T. Calma, Demidov. Calma. Quem é o líder?
- D. O judeu do 17º, Bronstein.
- T. Político?
- D. Sim, senhor.
O chefe da guarda manda abrir o portão e fica frente a frente com Bronstein. Entra sem falar com ninguém. Os prisioneiros também abrem passagem, todos calados, atemorizados.
- T. Por que esse barulho todo?
- B. Exigimos que parem de bater nos presos. Exigimos atendimento médico imediato para o companheiro Sivoronov. Exigimos que punam os culpados. Além disso...
- T. Um judeu?
- B. Para nossas exigências isso é irrelevante.
- T. Deve jogar xadrez.
- B. Para nossas exigências...
- T. Faça-me um favor... jogue uma partida comigo.
Os soldados levam Bronstein com brutalidade para a sala de Trótsky. Este fala enquanto arruma as peças no tabuleiro.
- T. Estou cercado de medíocres. Não tenho com quem praticar raciocínio lógico.
Trótsky, pega duas peças do tabuleiro, uma branca e outra preta para fazer o sorteio de quem iria sair primeiro no jogo. Trótsky manobra para ficar com as peças brancas, pois tem a vantagem do primeiro lance. Puxa conversa com Bronstein.
- T. Bronstein, você é um fenômeno. É verdade, meu amigo. Um fenômeno. Em 27 anos trabalhando em prisões russas, não lembro de ter visto um judeu insignificante organizar uma rebelião de ladrões russos. Sabe que atrocidades seu querido Sivoronov cometeu?
- B. Sr. Trótsky, não importa qual foi o crime dele. Tanto faz. Ele é um ser humano. Ele tem direitos. E vocês o oprimem. E todos os oprimidos lutam por liberdade e justiça.
Este diálogo é fundamental para o esclarecimento do raciocínio lógico entre Trótsky e Bronstein. Trótsky tenta justificar o espancamento de Sivoronov pelo grau de crime cometido e assim pela periculosidade em potencial. Bronstein nivela-o a todos que estão na prisão, que devem ter os mesmos direitos, pois é um ser humano como todos, que tem direitos, que não pode ser oprimido, e se for oprimido deve lutar por liberdade e justiça. Então, um crime grave deve ter o mesmo nível de punição de um crime leve? A prisão é um local de garantia de direitos quando o criminoso está ali por não ter respeitado o direito do próximo? Essa linha de raciocínio é a mesma linha dos Direitos Humanos que garante ao preso no Brasil um salário, onde, por outro lado, sua vítima não é acolhida e passa por dificuldades, inclusive financeira. O cidadão comum que paga seus impostos, custeia essa remuneração para o criminoso que um dia foi seu algoz. Parece que a lógica, a ética, a moral e principalmente a justiça foram escanteadas... em favor de que?
- T. De fato, vocês, judeus e revolucionários, não conhecem o povo russo, mas continuam tentando salvá-lo e libertá-lo. O povo russo não pode ser libertado. Ou sua alma desencadeará uma escuridão que devorará o mundo. Mas primeiro os libertadores. Os russos só podem ser controlados, para o próprio bem deles.
Esse pensamento destoa da moral cristã. Qualquer ser humano pode ser libertado de sua ignorância, desde que ele deseje e tenha quem o ajude. Mantê-lo eternamente na condição de escravidão não é justo, ainda mais porque isso garante o bem-estar dos seus carrascos, o suor dos seus sacrifícios garante a mordomia de suas elites. As lições do Cristo servem para o homem controlar os seus instintos, sair da condição plena de animal e ser preparado para sair das correntes da escravidão, não como um animal o que atemoriza Trótsky, mas como um ser humano como imagina Bronstein. Só que Bronstein não considera a educação previa desse homem, animalizado e escravizado.
- B. Mesmo que isso seja verdade, por que bater nele? Por que bater num homem que já foi preso e que está cumprindo sua sentença?
- T. Como mais poderia controla-los?
- B. Como? Pelo exemplo. Conduzindo-os aos ideais de justiça...
- T. Você é débil mental? Se você com essa atitude, conseguir viver mais cinco anos, verá que só é possível controlar as pessoas através do medo. Medo é a base de qualquer ordem. Bater num homem inocente na frente dos outros é melhor do que bater em todos que perdem o medo e causam caos.
Realmente é difícil a educação de um homem animalizado dentro de uma prisão, onde se espera se concentrarem os piores. Temos visto exemplos aqui no Brasil, inclusive no Rio Grande do Norte, dentro das prisões. Quantas missões evangélicas chegam dentro dos presídios, transformam alguns poucos, mas a maioria, brutalizada, não se mostram acessíveis, e até roubam e podem colocar como reféns a esses evangelizadores.
- B. Não acha que isso é desumano?
- T. É claro. Tenho muito poder. Não pode decidir o destino das pessoas e continuar sendo humano. É jovem e ingênuo demais se acha que o mundo estará disposto a segui-lo por empatia aos seus sonhos utópicos. Mas daqui a dois anos, sua ingenuidade desaparecerá e a sede de poder permanecerá. Posso ver isso em seus olhos, Bronstein.
Verdade, como Trótsky podia ser humano tendo que punir um criminoso de características animais, mas de aparência humana. Para punir o animal na pele de humano, teria que ser visto como desumano, pelos humanos que estão testemunhando. A argumentação sobre a ética e moral não consegue transformar pessoas tão incrustadas na ignorância, desde a infância, acostumada com todo tipo de crime para a sobrevivência e manutenção de prazeres escusos.
- B. Suas palavras são bonitas, mas são desmentidas por tudo que está acontecendo. E você, por conta do seu fanatismo chauvinista, não consegue perceber. Bateu em Sivoronov para assustar os outros. E daí? Conseguiu o oposto. As pessoas se uniram e estão exigindo justiça.
- T. Não estão mais. Escute.
- B. Mas vão exigir. Pode ter certeza. Não fique surpreso quando a ira das pessoas o varrer e o colocar onde merece: no lixão da história.
- T. Disso eu tenho certeza. Dai a César o que é de César. E nós, cães imundos, só podemos uivar e implorar por um osso. É a vida. No século 21, sob os gritos de uma multidão em júbilo, um camponês, um pobre coitado com um estilete na mão irá até o rosto esplêndido da Madona Sistina e desfigurará seu rosto em nome da igualdade e fraternidade. Também tem essa visão?
- B. Não. Essa é a sua visão do século 21. É seu modo de pensar de policial que só consegue pensar no pior, vendo todos como peões. Respirando quando mandam, obedecendo a ordens, essa é a visão
- T. As palavras sobre o século 21 não são minhas. São de Dostoiévski. Ele também vai para o lixo? Bem, Sr. Bronstein... eu estava errado. Achei que havia algo verdadeiro em você, mas não. Você é só retórica. (arte da eloquência, de argumentar, de falar). Xeque-mate.
Trótsky termina o jogo com sua vitória, chama o guarda e manda colocar o prisioneiro na solitária. O tempo passa... Bronstein sozinho, dentro das quatro paredes da solitária, aspecto de perplexidade, cai ao chão, sujo, rosto colado no solo... pensa alto... “Não sou ninguém, e quando eu derreter sob o quadrado de luz do céu, terei morrido sem nenhuma sentença e surgirei como prisioneiro de novo. E dia como noite, e noite para sempre. Mas tenho fé na humanidade, a única coisa que me mantém são”. Invade a sua mente as palavras de Trótsky e o alarido dos colegas de prisão, imagens da infância, de abandono: “Só é possível controlar as pessoas através do medo, Trótsky! Trótsky! Trótsky!” Volta à mente as suas reflexões acompanhadas por imagens de escorpiões e serpentes... “...e surgirei como prisioneiro de novo. E dia como noite, e noite para sempre. Mas tenho fé na humanidade, a única coisa que me mantém são.”
- B. Pai, é você?
- T. Sou eu. Quem mais seria? Então, Bronstein? Aprendeu a lição?
- B. Aprendi. Eu juro que sairei daqui e destruirei seu mundo imundo.
- T. Isso não vai acontecer. O mundo imundo está dentro de você. Lembre-se disso, Leiba. Está ouvindo isso de mim, Nikolai Trótsky, que pode acabar com você agora mesmo.
Os dois estão com a verdade, tanto Trótsky que podia acabar com a vida de Bronstein dentro daquela solitária, quanto Bronstein que disse que aprendera uma lição capaz de destruir o mundo de pessoas como Trótsky.