Meu Diário
18/06/2020 23h51
UMA MORTE NA MÃO

            Existe um clamor, dentro de nossa cultura, quando uma pessoa morre. Por mais espiritualizada que seja, geralmente a pessoa se comporta como se aquele ente querido que teve o seu corpo colapsado, que vai se decompor e voltar à matéria de onde saiu, deixou de existir, foi perdido para sempre.

            O paradigma espiritualista que implica no mundo espiritual, onde os espíritos que animam e gerenciam os corpos se deslocam após a morte desses, não é respeitado como devia. Se a pessoa tem a compreensão que na realidade não morre, que seu espírito, o condutor da vida real, somente se desloca de um plano para outro, por que tanto desespero com essa passagem? 

            Confesso que recebo críticas por ter um comportamento de tranquilidade, de compreensão dessa passagem para o mundo espiritual, e até fico contente, quando a pessoa estava sofrendo com alguma doença, incurável, cujo destino final era a morte do corpo físico. Entendo que a pessoa ficou livre desse pesado encargo, do sofrimento gerado, e passou para uma dimensão, onde o espirito livre do peso carnal, não tem mais o sofrimento gerado pelo corpo. Numa situação dessa, qual seria o sentimento lógico? Tristeza ou alegria? Não uma alegria de ficar livre do ente querido, mas sabendo que ele conseguiu a libertação de um sofrimento inevitável, de uma doença, preso à carne e agora está numa situação de alívio, bem perto de Deus, se conseguiu obedecer sua lei, como Jesus ensinou.

            Aconteceu comigo, agora, recentemente, algo associado a morte, nas minhas mãos, fato até comum, na minha profissão de médico e professor, e fiz logo associação com tudo que escrevi acima.

            Estava acostumado com ela, caminhava com ela perto do coração. Tinha afeto por ela. Mas sabia que ela um dia não iria mais existir. Mas isso não me preocupava. Vivia o dia-a-dia com ela, aproveitando os bons e maus momentos, os pensamentos alegres e tristes. Fazíamos poesias, textos científicos, românticos... eu a abraçava com carinho, meus dedos gostavam de sentir o seu contorno liso. 

Comecei a perceber que ela estava cada vez mais ativa, como se tivesse gastando um pouco mais de sua energia. Em seguida essa energia acabou, de forma súbita, procurei faze-la ficar ativa, mas não consegui. Entendi que ela havia morrido, estava apenas com o seu corpo, inerte, sem mais função. Olhei por um momento tudo que havíamos feito juntos, com saudade, mas sem derramar lágrimas. 

Fechei os seus olhos com a tampa azul e a joguei na lata do lixo.

            Passei no mercadinho e comprei outra caneta Bic, novinha, cheia de energia, e começamos uma nova relação. 

Por quê ter medo da morte? 


Publicado por Sióstio de Lapa em 18/06/2020 às 23h51


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr