Continuemos o estudo interpretativo da obra de Humberto de Campos / Chico Xavier... “Brasil coração do mundo, pátria do Evangelho”, continuando no quinto capítulo “Os escravos”.
OS ESCRAVOS
Certo dia, preparava-se, numa das esferas superiores do Infinito, o encontro de Ismael com Aquele que será sempre caminho, verdade e vida.
Por toda parte, abriam-se flores evanescentes, oriundas de um solo de radiosas neblinas. Luzes policrômicas enfeitavam todas as paisagens celestes, que se perdiam na incomensurável extensão dos espaços felizes.
Rodeado dos seres santificados e venturosos que constituem a coorte luminosa de seus mensageiros abnegados, recebeu o Senhor, com a sua complacência, o emissário dileto do seu amor nas terras do Cruzeiro.
Ismael, porém, não trazia no coração o sinal da alegria. Seus traços fisionômicos deixavam mesmo transparecer angelical amargura.
— Senhor — exclama ele —, sinto dificuldades para fazer prevaleçam os vossos desígnios nos territórios onde pairam as vossas bênçãos dulcificantes. A civilização, que ali se inicia sob os imperativos da vossa vontade compassiva e misericordiosa, acaba de ser contaminada por lamentáveis acontecimentos. Os donatários dos imensos latifúndios de Santa Cruz fizeram-se à vela, escravizando os negros indefesos da Luanda, da Guiné e de Angola. Infelizmente, os pobres cativos, miseráveis e desditosos, chegam à pátria do vosso Evangelho como se fossem animais bravios e selvagens, sem coração e sem consciência.
O mensageiro, porém, não conseguiu continuar. Soluços divinos lhe rebentaram do peito opresso, evocando tão amargas lembranças...
O Divino Mestre, porém, cingindo-o ao seu coração augusto e magnânimo, explicou brandamente:
— Ismael, asserena teu mundo íntimo no cumprimento dos sagrados deveres que te foram confiados. Bem sabes que os homens têm a sua responsabilidade pessoal nos feitos que realizam em suas existências isoladas e coletivas. Mas, se não podemos tolher-lhes aí a liberdade, também não podemos esquecer que existe o instituto imortal da justiça divina, onde cada qual receberá de conformidade com os seus atos. Havia eu determinado que a Terra do Cruzeiro se povoasse de raças humildes do planeta, buscando-se a colaboração dos povos sofredores das regiões africanas; todavia, para que essa cooperação fosse efetivada sem o atrito das armas, aproximei Portugal daquelas raças sofredoras, sem violências de qualquer natureza. A colaboração africana deveria, pois, verificar-se sem abalos perniciosos, no capítulo das minhas amorosas determinações. O homem branco da Europa, entretanto, está prejudicado por uma educação espiritual condenável e deficiente. Desejando entregar-se ao prazer fictício dos sentidos, procura eximir-se aos trabalhos pesados da agricultura, alegando o pretexto dos climas considerados impiedosos. Eles terão a liberdade de humilhar os seus irmãos, em face da grande lei do arbítrio independente, embora limitado, instituído por Deus para reger a vida de todas as criaturas, dentro dos sagrados imperativos da responsabilidade individual; mas, os que praticarem o nefando comércio sofrerão, igualmente, o mesmo martírio, nos dias do futuro, quando forem também vendidos e flagelados em identidade de circunstâncias. Na sua sede nociva de gozo, os homens brancos ainda não perceberam que a evolução se processa pela prática do bem e que todo o determinismo de Nosso Pai deve assinalar-se pelo "amai o próximo como a vós mesmos". Ignoram voluntariamente que o mal gera outros males com um largo cortejo de sofrimentos. Contudo, através dessas linhas tortuosas, impostas pela vontade livre das criaturas humanas, operarei com a minha misericórdia. Colocarei a minha luz sobre essas sombras, amenizando tão dolorosas crueldades. Prossegue com as tuas renúncias em favor do Evangelho e confia na vitória da Providência Divina.
Vejamos a crítica de Leonardo Marmo sobre esse trecho.
No presente capítulo, Jesus, em diálogo com Ismael parece desconhecer que os africanos eram escravizados pelos europeus ou parece desejar que os “portugueses escravizassem com amor”. Vejamos a passagem: (primeira página do capítulo): “...Ismael, porém, não trazia no coração o sinal da alegria. Seus traços fisionômicos deixavam mesmo transparecer angelical amargura”.
Nota-se, mais uma vez a utilização de expressões tipicamente católicas. E, principalmente, existe “angelical amargura”?! Observamos uma policialesca crítica sobre o escrito. Não é considerado pelo crítico que isso seja um trabalho de reportagem que o autor escreve como aconteceu do seu ponto de vista e que pode esta “contaminado” pelas suas próprias convicções.
Vejamos o que Jesus comenta para explicar a escravidão dos negros no Brasil que durou praticamente 4 séculos inteiros, e cujas consequências, de certa forma, perduram até hoje: “...Havia eu determinado que a terra do Cruzeiro se povoasse de raças humildes do planeta, buscando-se a colaboração dos povos sofredores das regiões africanas; todavia, para que essa cooperação fosse efetivada sem o atrito das armas aproximei Portugal daquelas raças sofredoras, sem violências de qualquer natureza. A colaboração africana deveria, pois, verificar-se sem abalos perniciosos, no capítulo das minhas amorosas determinações...”
Em primeiro lugar, seria mais coerente supor que Jesus dissesse “daqueles irmãos sofredores” e não “daquelas raças sofredoras”. Da maneira como o texto é apresentado, Jesus está pensando em termos de “raças”. Ora, o Espírito é imortal e pode habitar todo tipo de corpo, todo tipo de raça, em qualquer nacionalidade etc.
Também não vejo aqui tamanha discrepância entre raça e irmão. Continuamos compreendendo que cada raça é formada por nossos irmãos. Jesus foi até mais criterioso ao falar de raça, pois localiza o foco de sua atenção em determinada região.
Em segundo lugar, a “colaboração” é um eufemismo pouco adequado para escravidão. Jesus não poderia ignorar que havia escravidão no mundo e que os negros ficariam 4 séculos como escravos no Brasil. Em terceiro lugar, “...aproximei Portugal daquelas raças sofredoras, sem violências de qualquer natureza...” causa extrema estranheza. É possível que Jesus, como governador da Terra, tenha dirigido o processo de aproximação entre Portugal e os povos africanos, entretanto, não se pode acreditar que o Mestre esperasse que o processo de escravização ocorresse sem violências, ou mesmo crer que Portugal pudesse convencer estes povos a migrarem para o Brasil voluntariamente. Do século XVI ao século XIX, a par dos quatro séculos de escravidão no Brasil, portugueses, espanhóis, franceses, holandeses e ingleses desfalcaram a África de uma parte muito grande da sua população (cerca de 15 milhões de indivíduos). Jesus poderia esperar uma colaboração não escrava, porém, como possuímos o livre arbítrio, que nem Deus interfere, então uma escravidão foi colocada em prática a invés de outro tipo de colaboração menos dolorosa. Acredito que da mesma forma que houve migração de Portugal para o Brasil na base da negociação, teria sido conseguido também com os povos africanos. Acontece que a civilização europeia decidiu ter mais lucros com a escravização desses povos submissos.