Este é o sexto e último texto escrito no camping há 24 anos, após eu ter sido expulso de casa pela minha segunda ex-esposa...
11-09-96 (09h02)
Estou de volta à minha base. Após uma noite onde pela talvez primeira vez procurei o sono e não encontrei. Minha cabeça fervilhava procurando encontrar uma solução para sensibilizá-la, sem necessitar a minha transformação, a minha essência.
Ia e vinha num turbilhão de imagens sempre acompanhado por aquela incomoda sensação de aperto no coração que de tão forte parecia estar se espalhando por todo o corpo.
Às 03h30 saí dessa tortura quando fui chamado para ver um paciente portador do Mal de Alzheimer que estava com pressão baixa. Observei que ele estava definhando, em estado de caquexia. Ossos salientes, veias esvaziadas, escaras no corpo, secreção nos pulmões, um olhar perdido no vazio, sem responder aos estímulos que eu provocava. Percebi que sua vida estava se esvaindo lentamente. Afinal, há cerca de quatro anos ele vem se internando em diversos hospitais.
Chamei a sua esposa, falei do seu estado de saúde, e ela me falava ainda com lágrimas nos olhos que aquele era mais um momento, talvez o culminante da perda. Isso porque ao longo de sua doença, foi perdendo um pouquinho dele à cada crise, a cada ameaça de morte.
Seu sofrimento era visível, mas mesmo assim correu em todos os hospitais clínicos para tentar lhe livrar de mais uma ameaça de morte.
Fiquei a refletir e fazer comparações com o nosso caso. Talvez a minha doença seja emocional e ela faz também você sofrer a cada momento, e sentir que me perdia a cada crise mais forte. Mas naquela mulher eu via a luta contra todas as chances de manter por mais um pouco perto dela aquele pedaço de carne, sem alma, sem reações inteligíveis.
O que era aquilo? Gratidão? Solidariedade? Compreensão?... ou quem sabe, amor? Amor por aquele ser miserável, cheio de pústulas e de odor fétido? Que não conseguia sorrir, falar, pedir, nem mesmo olhar? Que as enfermeiras evitavam respirar o mesmo ar e improvisavam luvas para toca-lo?... mas quem sabe, não é amor? Somente esse sentimento consegue superar as maiores barreiras que essa vida nos oferece.
Agora, olhando você e vendo seu comportamento, me mandando para longe de você por causa de aspectos do meu comportamento, e sabendo você, com certeza, com capacidade igual ou maior que aquela mulher, de amar, por um momento senti inveja daquele paciente. E lá no íntimo veio o desejo de ter uma doença semelhante, pois com certeza eu não poderia ter o mesmo comportamento que tenho, e mesmo que ficasse deformado e brutalizado numa cama de hospital, teria você ao meu lado, me confortando, me amando, mesmo que eu não pudesse olhar nos seus olhos e retribuir. Mesmo que você passasse a mão carinhosamente na minha cabeça e beijasse meu corpo asqueroso, e eu não pudesse pelo menos sorrir para você. Mas como o amor está enraizado mais profundamente do lado espiritual, eu me regozijaria por meu amor está sendo plenamente correspondido, apesar dele não poder se expressar.
Mas não tive essa “sorte”. A minha doença é invisível para todos aqueles que me rodeiam, com exceção daqueles que me amam profundamente. É o lado terrível de sua natureza, mais terrível que o Feitiço de Átila, pois nele os amantes apesar de não poderem se tocar enquanto humanos, o amor deles continuava existindo. O meu feitiço ou doença destrói o amor do meu ser amado e me deixa com o meu incólume, sofrendo por mim e por ela.
Não tenho um antídoto para esse mal, nem um bruxo que desfaça o feitiço. Tal qual os personagens de Dante, tenho que sofrer e arder nas chamas da saudade, não depois da morte e sim agora, em pleno uso de minhas razões. Pois essa é a natureza da minha doença.