Sióstio de Lapa
Pensamentos e Sentimentos
Meu Diário
17/03/2021 00h14
O JARDIM DAS AFLIÇÕES (2) – TIRANIA DO COLETIVO

            Documentário feito em 2017 com 83 minutos, sobre o pensamento de Olavo de Carvalho. Personificado pela sua presença, rotina de trabalho e convívio familiar na Virgínia (EUA), onde mora atualmente. O filme parte dos temas do livro homônimo que ele publicou em 1995, tais como simbolismo dos jardins na tradição filosófica, liberdade individual e opressão do coletivo, o pensamento aristotélico. Exibido pela Amazon em 14-03-21, data que assisti e comecei a fazer estas reflexões.

            Essa concepção, essa descoberta, é um dos motivos de eu morar aqui. Quer dizer, eu escolher morar num jardim, certo? E não na cidade. Escolhi viver assim, exposto à natureza, exposto ao universo, exposto ao ilimitado. Sem muros, sem fronteiras, sem coisa nenhuma. De modo a você sempre lembrar a presença do Universo. Se alguém vive na cidade, está fora do Universo, está fechado, dentro de um universo puramente humano administrado. O universo dele são as leis, os costumes, as fofocas, as autoridades... E ele acha que este é o ambiente real. Quando ele vai para o mato, para passar um fim de semana, ele acha que entrou no mundo da fantasia. Uma visão perfeitamente... e na segunda-feira ele volta para o serviço, e acredita que voltou para a realidade. Quando é exatamente o contrário: isto é a realidade.

            Morar aqui é um jeito de eu não esquecer disso. Inclusive eu passo para os alunos do curso um exercício que é estarem num jardim, num lugar qualquer, no mato, e deitar no chão, sentir, perceber, se impregnar da presença do universo acima deles, e do planeta que o sustenta embaixo, do chão. E isso é um modo de você não se perder na barafunda do mundo dos signos, não esquecer a presença do universo físico, que é onde realmente estamos, não é?

            Viver na cidade, acredito, também é viver na natureza. Uma natureza que foi transformada para trazer mais conforto e controle dentro de tantos relacionamentos interpessoais. Ficar no mato significa um contato com a natureza de forma mais pura, sem transformações humanas. Mesmo assim, dentro do mato, estamos em contato com a cidade ou com o que ela produz: a vestimenta, as armas, óculos, livros, etc. O pensamento do Olavo quer mostrar o contrate que existe entre a cidade e o campo, a natureza transformada, estuprada algumas vezes, e a natureza pura, simples, ingênua, virgem, que deixa de ser assim com a nossa simples presença, jogando piúbas de cigarros dentro dela, ou mesmo nossos simples rastros, assustando pequenos animais e destruindo alguma vegetação. 

            Pergunta – Olavo, você sempre foi um grande defensor do indivíduo e das liberdades individuais. E hoje, alega-se, clama-se aos quatro ventos que, nunca antes na história deste mundo, o indivíduo foi tão livre, e as liberdades individuais tão disseminadas. É verdade? Isso corresponde exatamente ao que acontece?

            Resposta – Acho que nesse assunto, como em muitos outros, existe uma confusão imensa entre o aspecto normativo da sociedade e a realidade social. Se você olhar a história só pelo ponto de vista da evolução das leis, da evolução dos direitos, você vai dizer exatamente isso, porque há uma série de leis para garantir liberdade de expressão, liberdade disso, liberdade daquilo... Leis que antes não existiam, evidentemente. Porém, você não pode esquecer que tudo aquilo que é normativo não expressa a realidade, mas apenas um ideal. Se o Código Penal, por exemplo, não fosse normativo, não precisaria existir Código Penal, porque simplesmente não haveria crimes. Se a sociedade fosse igual àquilo que o Código Penal descreve, simplesmente os crimes não existiriam. O Código Penal existe precisamente porque a sociedade não é daquele jeito. Existe porque ele não é obedecido. Assim são todas as leis. As leis expressa um ideal que você quer atingir. Um valor a ser realizado e não uma realidade do estado de coisas. Quando você olha a história social não por esse prisma jurídico, mas pelo prisma dos instrumentos de poder que existem e que estão à disposição do governante, você vê que os meios de restringir a liberdade hoje são infinitamente mais vastos do que qualquer tirano da humanidade poderia inventar. Por exemplo, estamos conversando aqui, o FBI pode estar a 2 km gravando nossa conversa e você não vai nem saber. Podem grampear seu telefone, hackear seu computador, violar sua correspondência, podem fazer o que quiserem. O Estado tem meios de ação hoje que lhe dão o domínio total sobre a vida dos indivíduos, coisas que ele nunca teve antes. Você imagina, por exemplo, às vezes na imagem vulgar – que é feita sobretudo com base na história jurídica – as pessoas imaginam: “Na Idade Média os camaradas viviam sob a tirania do Papa, etc.”. Muito bem. Você imagina o Papa, no ano 1300, baixar um decreto. Quanto tempo esse decreto levava para chegar, por exemplo, na Inglaterra? Meses. O emissário tinha que ir a cavalo, no caminho ele podia ser assaltado, os inimigos podiam acabar com ele. E quando chegasse lá, como o Papa iria ter o feedback? Se o decreto está sendo obedecido ou não é outro problema. Portanto, não havia meios materiais de controle, que apareceram muito depois. Quando você se enche de meios materiais de controle, você está tecnologicamente assegurado de que as pessoas farão tudo o que você quer. Você pode promulgar uma série de leis que assegure a liberdade a elas.  Porque isso não vai afetar o seu poder de maneira alguma. Os legisladores e governantes estão agindo o tempo todo. Para você parar com um processo que eles desencadearam leva um tempo desgraçado. Por exemplo, um projeto de lei. Aprovam um projeto de lei todo dia. Mas como faz para mobilizar a massa para ela se opor a um projeto de lei? Quanto tempo leva? Quanto tempo leva a discussão no parlamento e quanto tempo leva uma mobilização de 2 milhões, 3 milhões de pessoas? Isso quer dizer que o povo está sempre em desvantagem nesse aspecto. Por isso eu digo a norma é o seguinte: “Todo poder emana do povo, e contra ele será exercido”. Você cria o monstro e, em seguida, ele é quem manda. E para você interferir no processo é muito difícil. Substantivamente, o que é um direito? Um direito é uma obrigação que alguém tem para com você. Se você disser, “As crianças têm o direito de ser alimentadas”, quer dizer que alguém tem a obrigação de alimenta-las. Se disser assim: “As crianças têm direito à alimentação, mas ninguém tem obrigação de alimentá-las”, as crianças vão morrer nas ruas. A Simone Weil dizia isso. “A substância do direito é a obrigação do terceiro.” O direito não é nada fora disso. Isso quer dizer que, quando está ampliando direitos, você está ampliando obrigações, e as obrigações terão de ser impostas. Então, para impor essas obrigações você vai precisar de mais funcionários, novas delegacias, novos tribunais especializados, novas multas.... Ou seja, cada direito nominal que você coloca no papel, corresponde a um crescimento extraordinário do poder do Estado. E é assim que o Estado vai crescendo cada vez mais sob o pretexto de estar ampliando direitos e liberdades. De certo modo, esse é um processo inevitável. Toda a história vai na direção do controle estatal cada vez maior, não é? Bertrand de Jouvenel demonstrou isso no livro “O Poder: História Natural do Seu Crescimento.” Acho a tese dele absolutamente irrefutável. Aconteça o que acontecer, o poder do Estado, na modernidade, sempre cresce. Por esse ou por aquele meio. 

            Perfeita essa explicação dos direitos e deveres e da criação e fortalecimento do Estado, cada vez mais intenso. Certamente, ficamos a mercê dos homens maus que conquistam o poder e passam a violar os direitos do cidadão em busca dos seus próprios interesses, muitas vezes de forma criminosa. Precisamos descobrir como esse poder que emana do povo não se volte contra nós. Talvez as lições que o Cristo nos deixou traga uma forma de fazer isso, com a compaixão e a justiça. Construindo o Reino de Deus através da nossa cidadania pessoal pela transformação do nosso coração e da formação da Família Universal.

Publicado por Sióstio de Lapa
em 17/03/2021 às 00h14