Assistindo ao filme Clara e Francisco, disponível no Amazon em duas partes, resolvi digitar o texto do momento crucial onde Francisco, perante toda a cidade, se explica ao pai e ao Pai, depois de ouvir as acusações que pesam sobre ele. Achei importante dividir com meus leitores esse trecho que toca profundo em minha alma. Vou começar de quando a mãe, Pica, vai falar com ele que se encontra acorrentado por castigo do pai.
Francisco – A senhora não deve ter medo. Ele não me fez nenhum mal. Fui eu que o magoei. E a magoei também.
Pica – Francisco, o que está acontecendo com você? Está doente? Será que é por ficar com todos aqueles leprosos...
F – Mãe... olhe para mim. Somos todos leprosos. Mesmo se escondemos as nossas chagas sob as roupas mais bonitas e mentirmos uns para os outros para nos convencermos de que somos sãos e felizes, ainda assim esquecemos a verdadeira razão pela qual ser feliz. Que Deus ama todos nós apesar das chagas que escondemos. Deus nos ama tanto, mãe, que se tornou um de nós e que se fez pregar na cruz nu, mãe, mostrando todas as suas chagas.
A mãe o beija, tira as chaves das correntes e o liberta.
F – O que ele dirá?
P – Vá procurar o Bispo Guido, é uma pessoa sábia, saberá protege-lo.
F – Obrigado.
A cena se passa no salão onde o Bispo Guido o recebe.
G – E como se veio essa ideia estranha de dar dinheiro ao mestre Pedro para reconstruir a igreja de São Damião?
F – Porque está caindo aos pedaços. E porque o crucifixo me pediu.
G – Ah! Então Deus pediu que roubasse seu pai? O que está pensando? Acha que pode me enganar? Dizem que passa muito do seu tempo perto dos leprosos. Por que?
F – Porque ninguém me causava mais repulsa do que eles.
G – Então faremos assim. Irei a São Damião recuperar o dinheiro com o mestre Pedro e depois pedirei ao seu pai que participe de uma assembleia pública na qual você irá restituir tudo que pegou dele.
Ele se ajoelha submisso frente ao bispo Guido e a cena se desloca para a praça pública, com os habitantes fazendo círculo, encabeçado pelo bispo e no centro o pai, Bernardone, e o filho Francisco, este portando uma sacola de dinheiro.
G – Pedro Bernardone, convocamos o senhor aqui nesta assembleia, para que esclareça na frente de todos o problema que surgiu entre o senhor e o seu filho.
B – Esclarecer, senhor? Não há nada para esclarecer! O filho é um ingrato, não sabe nada. A única coisa que ele sabe fazer é explorar o seu pai. É isso! Quer sair à noite, juntar os amigos para se divertir até o dia amanhecer, e o pai, paga! Ele precisa de armas para se gabar na frente de todos em batalha, e o pai, paga! É preciso tirar ele da cadeia, e o pai, paga! E o que ele faz? Simplesmente ele decide ir à Cruzada, mas depois ele volta. Volta para casa. Aí começa a andar com um bando de leprosos, tanto que agora as pessoas têm medo de comprar os meus tecidos, estão aterrorizadas! E por último ele esvazia o meu depósito, vende tudo e dá o dinheiro que recebeu para restaurar uma igreja em ruínas na qual ninguém entra há anos! Ninguém!! Eis a situação, senhor. Ficou claro agora?
G – E você, Francisco, o que tem a dizer para se desculpar?
F – Eu digo que sou um filho ingrato. O filho ingrato de um pai que me amou, como nenhum outro pai jamais amou o próprio filho, que teve grandes sonhos para mim, sonhos como nenhum pai teve. Mas tenho um outro Pai também. Que já me amava muito antes de Pedro Bernardone. O Pai que todos temos no céu. O nosso Pai, frente ao qual, todos os pais da terra são apenas filhos balbuciantes. Pedro Bernardone queria que eu fosse um grande cavaleiro, mas o nosso Pai do céu, Ele quer que eu seja o último entre os últimos. Eu te peço perdão, pai, e te devolvo todo o dinheiro. E eu renuncio a todo o meu direito sobre o seu nome e sobre os seus bens.
Fala isso, entrega o dinheiro ao pai e tira toda a sua roupa, ficando nu na praça pública, sob os olhares incrédulos de todos os presentes.
F – Até o dia de hoje eu chamei Pedro Bernardone meu pai, mas daqui para frente, o meu único Pai, será o Pai nosso que está nos céus.
O bispo Guido vai até ele e o cobre com sua capa, enquanto o povo surpreso e Clara extasiada admiram a cena
Este momento dramático reflete bem a nossa posição consciencial frente ao pai biológico e o Pai espiritual. Mostra a hierarquia que existe entre os dois e que devemos respeitar. Por mais que o pai biológico tenha suas expectativas com relação ao destino do filho, é a vontade do Pai espiritual que o filho deve obedecer, como Francisco deixou bem claro, ali em Assis.
Tenho um certo distanciamento da condição de pai biológico, tanto o meu pai que pouco conheci, não me vem na lembrança qualquer ação dele junto a mim, e também não exijo dos meus filhos nenhuma obediência aos meus desejos ou conselhos. Deixo-os à vontade para seguirem suas próprias convicções, pois afinal estou seguindo às minhas convicções, de obedecer com prioridade absoluta a vontade do Pai espiritual, deixando em segundo plano todos os outros interesses materiais. Por isso fiquei tão impactado com a posição de Francisco, pois é isso que eu talvez também faria naquela situação da praça pública.