Encontrei na internet a entrevista de Bill Moyers a Joseph Campbell, publicada em 02-11-2019, com 7.145 visualizações, que achei interessante reproduzir partes neste espaço, para refletir junto com meus leitores neste momento em que o Brasil tem na presidência uma pessoa considerada como mito. Será que Joseph Campbell fará alguma associação moderna com o nosso caso Brasil e reflexos no mundo?
BM – O que não pode ser conhecido por um nome, na nossa frágil tentativa de revesti-lo com a linguagem.
JC – E na nossa linguagem, a palavra para designar o que é de mais transcendental é “Deus”.
BM - Lembra o que lhe passou pela cabeça na primeira vez que viu a Criação, de Michelângelo?
JC – Quando conheci essa obra minha noção de divindade não era tão pessoal. Essa ideia de Deus como um velho barbudo com um temperamento meio desagradável é uma forma materialista de se falar sobre a transcendência. É exatamente o oposto do que foi encontrado numa ilha no Golfo de Bombaim, algo que data do século 8. É uma caverna maravilhosa. Você sai de uma paisagem iluminada e entra lá. Caminhando na escuridão não se enxerga nada. Mas se você continuar andando devagar, aos poucos seus olhos se acostumam e você vê aquela coisa enorme, de uns seis metros de altura por seis de largura. A cabeça central é a máscara da eternidade. Essa é a máscara de Deus. A máscara da eternidade. Essa é a metáfora pela qual a eternidade deve ser vivenciada com esplendor. E as outras duas figuras ao lado de forma oposta? Toda vez que nos afastamos da transcendência chegamos ao campo dos opostos. Esses dois pares de opostos se apresentam como macho e fêmea, vindos desses dois lados. E o ser que comeu o fruto da árvore do conhecimento, não só do bem e do mal, mas do macho e da fêmea, do certo e do errado, da luz e da escuridão. Tudo nesse campo do tempo é dualístico. Passado e futuro, morto e vivo, ser ou não ser, é e não é.
BM - E qual o sentido de eles estarem ao lado da máscara de Deus, da eternidade? O que esta escultura nos diz?
JC – A máscara representa o centro e os dois representam os opostos. Sempre aparecem em pares. Tente colocar sua mente no meio. A maioria de nós coloca a mente no lado do bem, contra aquilo que achamos ser o mal. Creio que foi Heráclito que disse: “Para Deus todas as coisas são boas, certas e justas. Mas para o homem algumas são certas e outras não.” O homem está no campo do tempo e um dos problemas da vida é compreender os dois termos. Ou seja, eu conheço o centro. E sei que o bem e o mal são simples manifestações temporais.
BM – Existem mitos mais verdadeiros que outros?
JC – Eles são verdadeiros em sentidos diferentes. Entende? Há toda uma mitologia baseada na compreensão que transcende o dualismo. A nossa mitologia é baseada no dualismo. Assim, nossa religião tende a enfatizar a ética, pecado, expiação, certo e errado. Veja, Eva começou com pecado, ou seja, saindo fora da zona mitológica do Paraíso, onde não existe o tempo. E o homem e a mulher nem sabem que são diferentes um do outro. Lá, os dois são apenas criaturas. E Deus e o homem são praticamente a mesma coisa. “Ele caminha no frescor da tarde no jardim onde estamos.” Eles comem a maçã, vem o conhecimento dos pares opostos e o homem e a mulher cobrem suas vergonhas. Eles são diferentes. Deus e o homem são diferentes. E a natureza está contra o homem. Certa vez, assisti uma palestra incrível de Daisetz Suzuki, aquele maravilhoso filósofo Zen que esteve aqui quando tinha mais de 90 anos. Começou a ensinar na Suíça, e eu o ouvi em Ascona. Ele ficou de pé e disse: “Deus contra o homem, o homem contra Deus; homem contra natureza, natureza contra o homem; natureza contra Deus, Deus contra natureza. Que religião mais engraçada.” Nas outras mitologias, a pessoa se coloca em sintonia com o mundo. Mas se o mundo é uma mistura do bem e do mal, você não se coloca em sintonia com ele. Você se identifica com o bem e luta contra o mal. E esse é um sistema religioso do Oriente Médio depois da época de Zaratustra. Está presente na tradição bíblica. No cristianismo, assim como no islamismo. É esse negócio de não ser uno com a natureza. E até falamos com certo desprezo das “religiões da natureza”. Com essa queda, a natureza foi corrompida. É um mito que corrompe o mundo inteiro para nós. E cada ato espontâneo é pecaminoso, porque a natureza é corrupta e tem de ser corrigida, não se pode ceder a ela. Surge uma civilização totalmente diferente, um modo de vida diferente conforme o seu mito, se ele vê a natureza decaída ou como sendo ela mesma, uma manifestação da divindade e do espírito como revelação da divindade que é inerente à natureza.
BM – Essa ideia indiana antiga da natureza como reveladora da divindade porque ela nos impediria de dominar a natureza?
JC – Mas essa é a condenação bíblica da natureza que os americanos herdaram de sua religião e trouxeram consigo. Deus não está na natureza. Deus é separado dela e a natureza não é Deus. Essa distinção entre Deus e o mundo não existe na base do hinduísmo, nem do budismo. Nunca me esquecerei de uma experiência que tive no Japão. Estar num lugar que nunca ouviu falar da queda do Jardim do Éden. Estar num lugar onde um texto xintoísta diz que “Os processos da natureza não podem ser malignos.” Onde cada impulso natural não deve ser corrigido, mas sim, sublimado, embelezado. E aquele maravilhoso interesse pela beleza natural e pela cooperação com a natureza, a ponto de em jardins japoneses você não saber onde começa a natureza e onde termina a arte. Isso para mim foi uma tremenda experiência e é uma mitologia diferente.
Essas conclusões de Joseph Campbell me fazem pensar no conflito que existe hoje entre o atual Papa e os padres que seguem a tradição da Igreja Católica, de seguir as lições do Cristo, identificando e combatendo o mal, levando o amor e a ética nos relacionamentos, num clima de fraternidade, acusando com veemência todas as iniquidades, principalmente a hipocrisia. O Papa Francisco tende a seguir os caminhos da modernidade, do positivismo, sem fazer a distinção severa entre o bem e o mal, considerando todos como irmãos, assim como o Pai considera todos como filhos. Posso concluir que o pensamento e comportamento do Papa se aproxima mais da essência de Deus, enquanto os padres tradicionais se aproximam mais da essência do Cristo. Parece um paradoxo, mas, de acordo com Campbell estão correto. Em Deus encontramos a Unidade, em Jesus o Dualismo. E nós? Seguimos Deus ou a Jesus? Parece que não temos cacife suficiente para seguir a Deus, parece mais prático e seguro seguir Jesus e seu dualismo, e construir o Reino de Deus como ele ensinou, deixando de fora aqueles que não querem cumprir a lei do amor, da justiça, da solidariedade, e só pensam nos crimes, iniquidades, corrupções. Não tenho sabedoria suficiente para entender a justiça dessas iniquidades que o Pai reconhece dentro de um mesmo conceito de utilidade. Mas, acredito que Ele queira que eu siga os ensinamentos do Mestre que Ele nos enviou para ensinar este caminho de Verdade e Vida.