Encontrei na internet a entrevista de Bill Moyers a Joseph Campbell, publicada em 02-11-2019, com 7.145 visualizações, que achei interessante reproduzir partes neste espaço, para refletir junto com meus leitores neste momento em que o Brasil tem na presidência uma pessoa considerada como mito. Será que Joseph Campbell fará alguma associação moderna com o nosso caso Brasil e reflexos no mundo?
BM – Por falar em mitologias diferentes, vamos brincar um pouco. Tirei estes trechos do seu “Atlas”. Vou ler o Gênesis e, então, você identifica e lê o mito correspondente.
JC – Ah, sim!
BM – Gênesis 1: “E Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança, à imagem de Deus, o criou. Macho e fêmea, os criou. E Deus os abençoou e lhes disse: crescei e multiplicai-vos.”
JC – Agora veja esse trecho de uma lenda do povo Bassari da África Ocidental. “Unumbotte fez um ser humano e seu nome era homem. Em seguida Unumbotte fez um antílope e o chamou de Antílope. Unumbotte fez uma serpente, chamada Serpente. E Unumbotte disse a eles – a terra ainda não foi trabalhada. Vocês precisam amaciar a terra onde estão sentados. – E Unumbotte lhes deu sementes de todos os tipos e lhes disse: plantem todas essas sementes.”
BM – Gênesis 1: “Viu Deus tudo que havia criado e eis que era muito bom.”
JC – Agora cito do Upanishad. “Então ele percebeu... na verdade eu sou essa criação, pois eu a expeli de mim mesmo. Dessa forma, ele se tornou essa criação e aquele que sabe disso se torna um criador nessa criação.” Este é o ponto principal. Quando se sabe disso, se identifica com o princípio criativo que é o poder divino no mundo, ou seja, em você mesmo. É muito bonito.
BM – O que acha que estamos procurando quando nos atemos a uma dessas teorias da criação, a uma das histórias da criação? O que estamos procurando?
JC – Acho que estamos procurando uma forma de experimentar o mundo onde vivemos. Que nos abra para a transcendência que o inspira. E que inspira a nós mesmos dentro do mundo. É isso que as pessoas querem. É isso que a alma pede.
BM – Então procuramos uma harmonia com o mistério que anima as coisas. Isso que chama de vasto campo de silêncio que todos compartilhamos?
JC – Sim, mas não apenas encontra-lo, mas encontra-lo no nosso próprio ambiente, no nosso mundo, reconhecê-lo, ter algum tipo de informação que nos permita ver a presença divina.
BM – No mundo e em nós mesmos.
JC – Na Índia, há essa saudação, o “anjail”. Você sabe o que significa? É a saudação de prece. Usamos para fazer nossas preces. Eles cumprimentam assim para saudar o deus que existe dentro de você. Eles têm consciência da presença divina. Quando você entra num lar indiano, você é uma divindade e você sente isso pela maneira como eles o tratam. É um tipo de hospitalidade que não existe quando há simplesmente uma pessoa e outra. É um reconhecimento da identidade.
BM – Mas as pessoas que contavam essas histórias, que acreditavam e agiam de acordo com elas, não estavam fazendo perguntas muito mais simples como: “Quem fez o mundo? Como o mundo foi criado?” Não são essas as perguntas que as histórias sobre a criação tentam responder?
JC – Não. É através daquela resposta que eles percebem que o Criador está presente no mundo inteiro. Entende o que quero dizer? Veja essa história que acabamos de ler: “Vejo que Eu sou esta Criação”, diz Deus. Quando você vê que Deus diz que Ele é a Criação e você é uma criatura, então esse Deus está dentro de você e do homem com quem você está falando. Há então essa percepção, dois aspectos de uma única divindade. É maravilhoso.
BM – Deixe-me perguntar sobre os aspectos comuns dessas histórias. O significado do fruto proibido.
JC – Existe um tema recorrente nas histórias folclóricas chamado “A Única Coisa Proibida”. Lembre-se de Barba Azul... “Não abra aquela porta e sempre tem alguém que abre. No Velho Testamento, Deus dá uma única coisa proibida e Ele sabe muito bem, agora estou interpretando Deus. Ele sabe muito bem que o homem vai comer o fruto proibido. Mas ao fazer isso, o homem inicia sua própria vida. A verdadeira vida começa com aquele momento.
BM – Vejo também em algumas histórias antigas, a tendência humana de sempre culpar alguém.
JC – Sim.
BM – Deixe-me ler o capítulo um de Gênesis e você lê a lenda dos Bassari. “E Deus disse: Comeste da árvore que te ordenei que não comesses? E o homem respondeu: A mulher que me destes por companheira me deu o fruto da árvore e eu o comi. E disse o Senhor à mulher: O que fizeste? E a mulher disse: A serpente me enganou, e eu comi. Essa história de culpar os outros começou cedo! Vejamos a lenda dos Bassari.
JC – Ela também é severa com a serpente. “Um dia a Serpente disse. Nós também devemos comer esses frutos. Por que passar fome?” E o Antílope disse: “Mas não sabemos nada sobre essa fruta.” Então o homem e sua mulher tomaram a fruta e a comeram. E Unumbotte desceu do céu e perguntou: “Quem comeu a fruta?” E eles responderam: “Fomos nós”. Unumbotte perguntou: “Quem disse que vocês podiam comer essa fruta?” E eles responderam: “Foi a Serpente”.
BM – É a mesma história.
JC – Pobre Serpente.
BM – o que concluiu do fato de que nessas histórias os atores principais acusam outro personagem de ser o causador da queda?
JC – Acontece que, de fato é a Serpente. E nas duas histórias, a Serpente é o símbolo da vida, que descarta o passado e continua a viver.
BM – Por quê?
JC – É o poder da vida, porque a serpente solta a pele, assim como a luz solta sua sombra. Na maioria das culturas, a serpente é positiva. Até a mais venenosa da Índia, a cobra, é um animal sagrado. E a serpente Naja, o rei-serpente Nagaraja é a divindade mais próxima do Buda. Porque a serpente representa o poder da vida no campo temporal de enfrentar a morte. E Buda representa o poder da vida no campo da eternidade, de viver eternamente. Vi uma coisa fantástica de uma sacerdotisa de Burma, que tinha de trazer chuva para seu povo, atraindo um rei-cobra para fora da toca e lhe dando três beijos no nariz. Ali estava a naja, o doador da vida, o doador da chuva, que pertence à vida, uma figura divina positiva, não negativa. As histórias cristãs invertem isso, pois a serpente foi a sedutora. Isso equivale a recusar-se a afirmar a vida. Segundo esta visão, a vida é o mal. Qualquer impulso natural é pecado, a menos que você tenha sido batizado. Ou circuncidado. Nesta tradição que herdamos. Por Deus!
BM - Por ter sido a mulher a tentadora, as mulheres tiveram que pagar um alto preço, pois na mitologia, em algumas mitologias, foram elas que provocaram a queda.
JC – Claro que foram elas. A mulher representa a vida. O homem só entra na vida através da mulher. E assim, é a mulher que nos traz para este mundo de polaridades, de pares de opostos, de sofrimento. Creio que é uma atitude muito infantil dizer não à vida com toda a sua dor. Dizer que é uma coisa que não deveria ter acontecido. Schopenhauer diz num dos seus maravilhosos capítulos, creio que é em “O Mundo Como Vontade e Ideia”, que “A vida é algo que não deveria ter acontecido. Ela é, na sua própria essência e caráter, uma coisa terrível, pois precisamos matar e comer para viver.” Ou seja, sempre no pecado, segundo critérios éticos.
Uma forte reflexão Joseph Campbell traz à minha consciência. O sentido de culpa e perversidade que joguei sobre a serpente devido os ensinamentos bíblicos, fazem eu rever a consciência. Caso não fosse a participação da serpente nessa história, induzindo Eva a comer do fruto proibido, do conhecimento do bem e do mal, da dualidade, nós não existiríamos. Até hoje viveriam Adão e Eva no paraíso, uma existência idílica, utópica, sem sofrimento, ou transformações. O tempo não existiria, nós não existiríamos. A serpente foi o elemento que deu condição de existência à vida, como nós a conhecemos hoje. Dessa forma, é justo pensar de forma positiva sobre a o comportamento da serpente, como faz a maioria das mitologias. Então, aquele ar de malignidade que vocifera aquele ex-presidente que se tornou bandido e ex-presidiário, não pode ser tão culpado na sua relação com a serpente. Mas, consideremos, tudo isso no campo simbólico, pois quando chega ao nível da realidade, tanto a peçonha da cobra quanto as iniquidades dos marginais são prejudiciais para nós, individual e coletivamente.