A vida mostra para todos nós um caleidoscópio de situações das quais podemos tirar, em cada uma delas, lições para nossa própria vida. Por acaso (?) encontrei na internet uma canção que sempre escuto e que sempre me emociono. Fui ver a letra no site e me deparei com outras canções do mesmo compositor, Vicente Celestino. Achei interessante pinçar as três primeiras e fazer a reflexão dos conteúdos. A primeira é O Ébrio.
Antes de mostrar a letra o site mostrava um pouco da vida do compositor.
Nasci artista. Fui cantor. Ainda pequeno levaram-me para uma escola de canto. O meu nome, pouco a pouco, foi crescendo, crescendo, até chegar aos píncaros da glória. Durante a minha trajetória artística tive vários amores. Todas elas juravam-me amor eterno, mas acabavam fugindo com outros deixando-me a saudade e a dor. Uma noite, quando eu cantava a Tosca, uma jovem da primeira fila atirou-me uma flor. Essa jovem veio a ser mais tarde a minha legítima esposa. Um dia, quando eu cantava A Força do Destino, ela fugiu com outro, deixando-me uma carta, e na carta um adeus. Não pude mais cantar. Mais tarde, lembrei-me que ela, contudo, me havia deixado um pedacinho de seu eu: A minha filha. Uma pequenina boneca de carne que eu tinha o dever de educar. Voltei novamente a cantar, mas só por amor à minha filha. Eduquei-a, fez-se moça, bonita. E uma noite, quando eu cantava ainda mais uma vez A Força do Destino, Deus levou a minha filha para nunca mais voltar. Daí pra cá eu fui caindo, caindo... Passando dos teatros de alta categoria para os de mais baixa. Até que acabei por levar uma vaia cantando em pleno picadeiro de um circo. Nunca mais fui nada. Nada, não! Hoje, porque bebo a fim de esquecer a minha desventura, chamam-me ébrio.
Não sei se a história é real, mas o objetivo aqui é mostrar o que o caleidoscópio da vida pode nos oferecer, e mesmo esse texto sendo uma ficção, não pode deixar de mostrar uma faceta que a vida pode nos oferecer. Portanto, nossa sensibilidade torna-se empática com o sofrimento de cada ser humano que trilha os caminhos diversos que a vida nos oferece.
Ébrio
Tornei-me um ébrio na bebida, busco esquecer
Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou
Apedrejado pelas ruas vivo a sofrer
Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou
Só nas tabernas é que encontro meu abrigo
Cada colega de infortúnio é um grande amigo
Que embora tenham, como eu, seus sofrimentos
Me aconselham e aliviam os meus tormentos
Esta é uma prova da confusão que se faz do amor com o apego. A mulher que ele diz amar, pelo comportamento que demonstrou, é um forte apego. Se fosse amor, teria aceitado a ida da mulher com outro com o qual ela se sentia mais feliz. Continuaria a amando à distância e sua vida teria continuidade sem tanta destruição interna.
Já fui feliz e recebido com nobreza até
Nadava em ouro e tinha alcova de cetim
E a cada passo um grande amigo que depunha fé
E nos parentes... Confiava, sim!
E hoje ao ver-me na miséria, tudo vejo então
O falso lar que amava e que a chorar deixei
Cada parente, cada amigo, era um ladrão
Me abandonaram e roubaram o que amei.
Este é outro aspecto da condição humana que não devemos esquecer. Quando estamos em situação propícia, com bens e recursos que podemos compartilhar, é grande o número de parentes e amigos que orbitam sobre nós. Quando essas condições favoráveis desaparecem e a pessoa agora, em vez de ser solidária com as outras, as outra é que precisam demonstrar solidariedade, parentes e amigos se distanciam até o abandono total, como o cantou denuncia. Procuremos fazer o bem, ser solidários em tudo que o amor incondicional nos apontar, mas jamais esperemos ser da mesma forma retribuídos, se alguma fatalidade nos atingir.
Falsos amigos, eu vos peço, imploro a chorar
Quando eu morrer, à minha campa nenhuma inscrição
Deixai que os vermes pouco a pouco venham terminar
Este ébrio triste, este triste coração
Quero somente que na campa em que eu repousar
Os ébrios loucos como eu venham depositar
Os seus segredos ao meu derradeiro abrigo
E suas lágrimas de dor ao peito amigo
Belíssimo este final! Não quer ser lembrando num inscrição feita numa campa fria, basta o que ele nos ensina com suas canções. O que tanto foi consolado em seus dias de sofrimento, intoxicado pelo álcool como forma de anestésico, sentia apenas nas falas daqueles que sofriam e ficavam loucos como ele. Mesmo não tendo mais nada de material que possa interessar a herdeiros, a alguém, ele permite que na sua campa mortuária, cujos sentidos não mais funcionam, que aqueles loucos tão fraternos com ele, venham depositar suas lágrimas de dor no recipiente inerte de quem tanto sabia o que era isso.