Meu Diário
11/01/2022 22h20
O PODER DO MITO – 10 - INFINITUDE

            Encontrei na internet a entrevista de Bill Moyers a Joseph Campbell, publicada em 02-11-2019, com 7.145 visualizações, que achei interessante reproduzir partes neste espaço, para refletir junto com meus leitores neste momento em que o Brasil tem na presidência uma pessoa considerada como mito. Será que Joseph Campbell fará alguma associação moderna com o nosso caso Brasil e reflexos no mundo?



BM – Acha que a máquina está inventando novos mitos para nós ou que nós com a máquina, estamos inventando novos mitos? A máquina está transformando?



JC – Não. O mito incorpora a máquina. Assim como os antigos mitos incorporavam as ferramentas usadas. A forma dos utensílios, por exemplo, é associada aos sistemas de poder envolvidos na cultura. Nós não temos uma mitologia que incorpore isso. Os novos poderes estão sendo, por assim dizer, surpreendentemente anunciados por meio daquilo que as máquinas podem fazer. Ainda vai levar tempo até podermos ter uma mitologia. As coisas mudam rápido demais. O ambiente em que vivemos muda depressa demais para sofrer influências da mitologia. Deve perceber.



BM – E como vivemos sem mitos?



JC – Bem. Estamos vivendo. O indivíduo tem que encontrar aquele aspecto do mito que tem relação com a conduta da sua vida. Os mitos servem para muitas funções. A função básica é abrir o mundo para a dimensão do mistério. Se você perde isso, fica sem uma mitologia para perceber o mistério subjacente a todas as formas. Depois vem o aspecto cosmológico do mito. Ver o mistério tal como se manifesta através de todas as coisas. De modo que o universo se torna uma espécie de imagem sagrada, e através dela, você está sempre se dirigindo ao mistério transcendental. Há também outra função, a sociológica de validar ou conservar uma certa sociedade. É esse o lado do mito que passou a predominar em nosso mundo.



BM – Como assim?



JC – As leis éticas, as leis da vida em sociedade, todas aquelas páginas e mais páginas de mandamentos de Jeová sobre que roupa vestir, como se comportar com o próximo conforme os valores dessa determinada sociedade. Mas há uma quarta função do mito e é com essa que acho que todo mundo deveria tentar se relacionar hoje em dia. É a função pedagógica. “Como viver a vida humana sob quaisquer circunstâncias?” O mito pode ensinar. Há uma linda história num dos Upanishads, o “Brahamavaivarta” a respeito de Indra. Um deus que, na verdade, é o equivalente a Jeová. Ele é o padroeiro de um certo povo e do tempo e vida históricos, com um monte de regras que as pessoas têm que seguir. Num dado momento, um grande monstro chamado Vritra fechou todas as águas da Terra. Houve uma seca terrível. O mundo estava em péssimas condições. Depois de muito tempo, esse deus Indra percebeu que tinha uma caixa cheia de relâmpagos. Bastava lançar um raio sobre Vritra e fazê-lo explodir. E quando ele fez isso, as águas voltaram a correr e o mundo se refrescou e ele disse: “Puxa, que grande homem eu sou!” Então, pensando assim, Indra sobe a Montanha Cósmica que é a montanha do centro do mundo e decide construir ali um novo mundo, uma nova cidade e, principalmente, um grande palácio digno de alguém tão grandioso quanto ele. Ele chama Vishvakarman, o principal carpinteiro dos deuses e o incumbe de construir esse palácio. Vishvakarman começa a trabalhar e constrói o palácio rapidamente. Só que cada vez que Indra vem ver o trabalho tem ideias ainda mais grandiosas e magníficas para o palácio. Por fim, Vishvakarman pensa: “Meu Deus! Nós dois somos imortais, e os desejos dele não têm fim. Estou preso nessa tarefa para o resto da vida.” Decide então consultar Brahma, que é o criador e queixar-se a ele. Brahma está sentado numa flor de lótus. Símbolo da energia e da graça divinas. Esse lótus nasce do umbigo de Visnu que é o deus adormecido, cujo sonho é o universo. Então lá está Brahma no seu lótus e Vishvakarman vem até a margem desse lago de lótus do universo, saúda e conta sua história. Brahma então lhe diz: “Pode ir embora, eu resolvo isso.” Assim, na manhã seguinte, no portão do palácio em construção aparece um belo rapaz de um negro azulado, com várias crianças em volta, só admirando sua beleza. Esse rapaz entra e Indra, o rei-deus, em seu trono lhe diz: “Seja bem-vindo, jovem. O que o traz ao meu palácio?” “Bem”, diz o rapaz, com uma voz de trovão rugindo no horizonte. “Disseram-me que você está construindo um palácio como nenhum outro Indra jamais construiu. Já andei olhando tudo por aqui e me parece que é verdade. Nenhum Indra antes de você construiu um palácio como este.” Ao que Indra responde: “O que? Indra antes de mim? Do que você está falando?” E o jovem diz: “Indras antes de você! Já vi muitos e muitos Indras irem e virem. Pense bem, Visnu está dormindo no oceano cósmico e do seu umbigo cresce o lótus do universo. Neste lótus está sentado Brahma, o criador. Brahma abre os olhos e passa a existir um mundo governado por um Indra. Ele fecha os olhos, esse mundo desaparece. Abre os olhos e o mundo passa a existir. Fecha os olhos... e a vida de um Brahma dura 432 mil anos e ele morre. Daí volta o lótus. Outro lótus e outro Brahma. E pense nas galáxias além das galáxias no espaço infinito. Cada uma delas é um lótus com um Brahma sentado, abrindo e fechando os olhos com seus Indras. Talvez aqui na sua corte haja algum sábio que se disponha a contar as gotas de água nos oceanos ou os grãos de areia nas praias. Mas ninguém poderia contar todos esses Brahmas, muito menos todos esses Indras.” E enquanto ele fala, atravessando o chão do palácio, uma fileira de formigas em perfeita ordem. O rapaz ri ao vê-las. Indra fica de cabelo em pé e diz: “Do que você está rindo?” E o rapaz, responde: “Não me pergunte isso a menos que você esteja disposto a ficar magoado.” Indra responde: “Estou disposto. Ensine-me.” O menino então diz: “Antigos Indras, todas elas. Por vidas, se elevam da condição mais baixa, espiritualmente, até a iluminação mais alta e fulminam vritra com seu raio e pensam: Puxa, que grande homem eu sou! E em seguida caem de novo lá em baixo”. Então, Indra senta no seu trono totalmente desiludido e chocado. E pensa: “Bom, é melhor parar de construir este palácio.” Chama então Vishvakarman e diz: “Você está dispensado.” Vishvakarman entende sua intenção. Está dispensado. Acabou-se a construção do palácio. Indra então decide: “Vou me tornar um iogue e apenas meditar nos pés de lótus de Visnu.” Mas ele tinha uma bela rainha chamada Indrani. E quando Indrani ouve isso, ela vai até o sacerdote, o capelão dos deuses e diz: “Agora ele está com esta ideia na cabeça de querer ser iogue.” O brâmane diz: “Bem, venha comigo, querida. Vamos resolver isso.” Ele conversa com Indra. Os dois se sentam à frente do trono do rei e o brâmane diz: “Alguns anos atrás escrevi um livro para você sobre a arte da política. Você está na posição de rei. Está na posição de rei dos deuses. Você é uma manifestação do mistério de Brahma no nível do tempo. Este é um alto privilégio. Você deve apreciá-lo, honrá-lo, e tratar a vida como se você fosse aquilo que realmente é.” E com essas instruções Indra desiste da ideia de se tornar um iogue e descobre que na vida, ele pode representar a eternidade na forma de um símbolo. O símbolo do brâmane e da verdade final. Assim, cada um de nós é, de certa forma, o Indra da sua própria vida. E você pode fazer sua escolha. Ou vai para a floresta meditar, jogar tudo fora, ou então fica no mundo e na vida, seja no seu trabalho, que é o trabalho dos reis, da política e das realizações, seja na sua vida amorosa, com sua mulher e sua família, você estará realizando a verdade. Eu acho esse mito muito bonito.



BM – Será que chegamos a conhecer a verdade?



JC – Cada pessoa pode ter sua própria experiência e alguma convicção de estar em contato com seu próprio “satyananda”, seu próprio ser, consciência e felicidade verdadeiras. Os religiosos dizem que só passaremos por isso quando formos para o Céu, ou seja, depois da morte. Mas eu sou a favor de obter o máximo possível dessa experiência enquanto estamos vivos.



BM – Nossa felicidade é agora.



JC – Passaremos tão bem no Céu olhando para Deus, que não teremos nada da nossa própria experiência. Lá não é o lugar para se ter essa experiência. O lugar é aqui.



BM – Aqui e agora.



JC – Aqui e agora. 



Uma bela alegoria do mundo em todas as suas dimensões incalculáveis. A mitologia da Índia mostra tantos deuses e tantas formas de interação que é muito difícil, aqui do Ocidente termos uma compreensão mais completa do que se está querendo dizer. Estou acostumado com um Deus único, soberano supremo e criador universal de toda a existência. Eu não tenho alcance do início e do fim de tudo que existe, que Ele criou, mas se torna mais simples esta revelação judaica/cristã/muçulmana, pois fico apenas com essas duas condições, início e fim, que também não posso imaginar como seja. Pelo menos na mitologia hindu, a variedade de deuses, mostra um forma de imaginar essa dúvida, mesmo que seja coberta num emaranhado de simbologia. Nós, seres humanos, de tanta fragilidade e dificuldade de compreensão dos atos criativos de Deus, ficamos ainda presos em nosso egoísmo, desejando ter uma segurança e poder que não chega a ser uma partícula milionésima da fagulha da criação.



Publicado por Sióstio de Lapa em 11/01/2022 às 22h20


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr