Pedro andava meio sem rumo pela cidade, não tinha uma meta a atingir, um lugar a chegar. Estava encucado com o que sentia após ouvir uma parábola de Cristo sobre o perdão. Ele sabia que havia feito muita coisa errada, cometido muitos pecados, mas tudo isso ele deixava no passado e caminhava em frente, sem constrangimentos, sem nada que pudesse lhe apontar como culpado. Afinal, todos não faziam o que ele faz? Por que então se culpar com isso? O que ele faz de errado com os outros, os outros fazem de errado consigo. Então fica tudo equilibrado, né?... pensava...
Mas por que diabos ele fora parar um pouquinho para ouvir aquele “louco” que berrava sozinho na calçada com um microfone na mão pedindo que todos se arrependessem dos pecados para se salvar, que o filho de Deus estava ali para lhes perdoar? Eu tenho tanto pecado que é impossível aguem perdoar, nem que seja Deus, quanto mais o seu filho.
Mas por que essas palavras continuavam fazendo eco em minha cabeça? Continuava a pensar o estivador das rocas, com o corpo marcado pelos pacotes que levara do navio para as docas. Quem chegasse mais próximo ainda poderia sentir o bafo de álcool, que ele não relaxava de tomar com um churrasquinho de carne de porco antes de chegar em casa.
Só faltava essa, discutia consigo mesmo, certamente esse “doido” quer que eu volte e pague a ultima rodada de pinga e espetinho que disse aquele safado que vende carne de gato no palito, que eu não havia consumido.
Mas aquela história que ele falou de Jesus, que perdoou a rapariga que lavou os seus pés com as lágrimas, e ainda beijou e perfumou, porque ela demonstrou muito amor, pois tinha muito pecado a ser perdoado. Enquanto isso, o fariseu que havia convidado o Mestre a sua casa e estava criticando Jesus por ele não saber distinguir uma puta de uma pessoa direita, então não era profeta, muito menos filho de Deus.
Mas que tapa ele deu quando disse que a mulher muito amava porque tinha muito pecado e por isso teria que agir assim para alcançar o perdão. O fariseu teve que reconhecer que o Mestre estava certo quando ele falou aquela história dos dois homens que devia a um agiota, um 50 e outro 500 reais. O agiota num rasgo de compaixão perdoou aos dois. O fariseu chamado a julgar quem devia mais favores, não podia deixar de reconhecer que seria o que foi perdoado dos 500 reais. Ficou envergonhado ao perceber que a pecadora estava carregada de pecados e, portanto, fez todo o esforço para demonstrar o seu amor e ser digna do perdão, enquanto o fariseu que se considerava uma pessoa pura, não tinha necessidade demonstrar qualquer ato de amor para ser digno de perdão.
Diabos, que essa história não me sai da cabeça. Devia ter me embriagado mais, regurgitava os pensamentos o bruto estivador. Mas o que ganho demonstrando muito amor para ser digno da quantidade de perdão que eu preciso? Nunca vi perdão encher bucho...
Assim pensando e gesticulando, Pedrão chegou em casa, cenho franzido, olhar estranho. A mulher que sempre se esquivava do seu mau humor quando ele bebia, desde que casaram há 9 anos, ficava agora parada na sua frente, como se quisesse reconhecer que aquele era mesmo o seu marido, com o mesmo bafo de cana, mas agora com um olhar mais perscrutador, como se quisesse encontrar algo além do horizonte mental.
“Sim, pensava Pedrão, não custava experimentar... fazer algo bom para alguém para ver se ele se sentiria tão logo aliviado.”
Lembrou daquele “Pedro” do Evangelho, tão valente e tão covarde ao mesmo tempo, mesmo assim foi a ele que o Cristo recomendou a Sua igreja.
Bom, sabia que tinha que fazer algo para atenuar seus pecados, para conquistar o perdão. Mas não sabia por onde começar...
Com a cabeça mergulhada em tais pensamentos, não conseguiu ver a mulher admirada com a sua mudança, não sentiu apetite para sentar na mesa e comer o arremedo de jantar que ela havia preparado.
Caiu na cama com a cabeça mergulhada no travesseiro roto e deixou que o hálito alcoólico voltasse a lhe embriagar, num perfeito estilo de reaproveitamento de resíduos vaporosos.
Nessa condição, logo foi cooptado por Morfeu e entrou cambaleante no mundo dos sonhos.
Era agora um estivador musculoso... e curioso. Estava em uma terra estranha e viu à sua frente, uma algazarra que se arrastava tendo ao centro alguns soldados que levavam sob chicotes um homem coberto de sangue, com uma coroa de espinhos na cabeça e um pesado madeiro nos ombros.
Sentiu logo tamanha compaixão, por aquele que estranho que se arrastava arrastando tamanho peso sobre si. Chegou mais perto sem saber o que fazer. Foi quando o homem não resistiu e desabou no chão tendo o madeiro sobre ele.
Não soube de onde veio tamanha coragem, pois sem considerar o chicote dos soldados, chegou perto do homem, tirou o madeiro de sobre ele e colocou nas suas próprias costas.
O chicote agora tinha um novo alvo. Ele sentiu o peso do madeiro e principalmente o corte incandescente do chicote rasgando sua carne. Ouviu o urro que deu muito acima do alarido da multidão. Algumas mulheres caridosas chegaram perto do homem no chão, deram água a ele e limparam o seu rosto ensanguentado.
Os soldados agora tinham um novo motivo para brandirem seus chicotes e uma nova carne humana, mais musculosa, mesmo que fosse mais escandalosa com tais urros que apresentava a cada estalar do chicote em suas costas,
A multidão mais excitada, os soldados mais motivados, e Pedro, o impulsivo curioso que ficara em tal posição, de sofrer tais horrores, sem conhecer a quem estava ajudando, nem porque o fazia... apenas sentia que era isso que procurava.
A mulher de Pedro, perto da cama em que ele havia mergulhado tão rápido em tão profundo sono, nunca o tinha visto sonhar daquele jeito... soltava gritos de dor a cada momento, mas no seu semblante, além do icto de sofrimento, mostrava uma aura que ela pensara ter visto algo semelhante em alguns santos que tinha na igreja.
Ela não sabia se brigava com ele ou se rezava para ele. Também não sabia que existe muitos modos de se pagar pelo menos uma parte dos nossos pecados.