Fui convidado para o casamento de uma amiga que se realizou nas dependências do meu trabalho. Um edifício vertical, com muitos meandros para se dirigir a qualquer lugar, mas tem um pequeno espaço verde, natural, no seu entorno, onde foi programado a cerimônia.
Houveram algumas dificuldades de deslocamento dentro da repartição, já que o casamento seria realizado em diversos setores, finalizando no ambiente externo, onde estaria decorado com os motivos da Páscoa, por estarmos no calendário dentro dessa festa promovida pela Igreja Católica.
Finalmente, já estávamos nesta última fase do casamento, quando ouvimos uma forte voz, acima do celebrante. Era a de uma pessoa que provavelmente morava nas ruas e que estava naquele local em busca de uma internação psiquiátrica, era o que aparentava. As suas palavras não tinham contexto com o casamento, mas perturbava a atenção dos convidados que se voltavam com “cara fechada” para o intruso.
O segurança da instituição vendo o dilema que estava se formando, chegou perto do homem, barbudo e maltrapilho, e o conduziu pelo braço para fora do evento, sem demonstrar violência.
Acontece que depois de alguns minutos, o homem volta e continua com seu mesmo palavreado sem sentido para nós, mas que interferia com a cerimônia. O segurança não estava mais nas proximidades, parece que ele tinha sido chamado para outras ocorrências da instituição.
Observando que a cerimônia iria ser prejudicada, logo no seu final, e não tínhamos a quem recorrer para evitar o transtorno, decidi chegar perto do homem e falar com voz mansa acima do seu vozeirão, que ele estava atrapalhando aquela cerimônia de casamento. Não seria possível ele ficar afastado do evento até que terminássemos? Enquanto falávamos nós andávamos para distante sem ele apresentar resistência. Procurava me ouvir com atenção, mesmo que não demonstrasse muito entendimento. Chegamos num ponto onde ele podia sentar e mesmo que continuasse com seu falatório sem sentido, não iria mais perturbar o evento. Deixei-o lá e fui para o meu posto de convidado. As pessoas me olhavam com olhar de agradecimento, e todos permanecemos até o final do evento.
Ao sairmos observei que o “fulano” continuava onde o deixei, manipulando uma sacola que ele conduzia, certamente com os objetos do seu interesse para enfrentar a cada dia. Resolvi me aproximar dele para agradecer por sua atenção em me ouvir, perguntei o seu nome e perguntei se ele precisava de alguma coisa. Ele balbuciou algo que entendi como “Geraldo” e tirei uma nota de 20 reais e estendi para ele. Daí comecou minha surpresa... ele agradeceu com voz mais clara que não queria. Perguntei por que, e ele respondeu que não iria atender o que ele necessitava. Olhei desconfiado e perguntei o quanto ele necessitava. Ele disse, 100 reais... fiquei ainda mais desconfiado. Será que ele devia esse dinheiro a algum traficante de drogas? Mas porque estava rejeitando os 20 reais se podia completar pedindo a outras pessoas?
Depois de alguns instantes de debate íntimo, ainda com a nota de 20 reais na mão, resolvi retornar a carteira e tirar a nota de 100 reais que ele precisava. Lembrei daquela lição que Jesus deu sobre a pequena oferta da viúva ser maior de que todas, pois ela estava ofertando do que iria lhe fazer falta. Pensei que 20 reais não iriam me fazer falta, mas 100 já poderia fazer. Mas isso me aproximava mais ainda do Criador.
Estendi a nota de 100 reais para o “Geraldo” e ele olhou para mim com cara de espanto. Vi descer dos seus olhos e percorrer por sua face suja e enrugada duas correntes de lágrimas. Ele falava agora com voz emocionada, mas inteligível, sem dificuldade de compreensão. Falou que esse ato que eu estava fazendo era o que ele precisava para ter de volta a sua liberdade. Há mais de 20 anos, quando ele brincava com os amigos da repartição, bebendo, pilheriando e paquerando, chegaram a comentar da maldade que existia no mundo, de que não existiam mais pessoas capazes de praticar a bondade sem ter por trás qualquer estratégia de recompensa. Eu disse que eles estavam errados, que ainda existiam pessoas bondosas no mundo, mesmo que não soubessem que eram boas, acima da maldade. Então foi feito uma aposta, que eu deveria sair como mendigo pelas ruas e se alguém me desse 100 reais sem nada querer em troca, eu ganharia a aposta e na volta cada um dos 10 amigos lhe daria mais 100 reais. Sua recompensa seria de 1.100 reais, nada mal para um fim de semana, já que estávamos na sexta-feira. Como eu tinha na época 35 anos, divorciado e sem filhos e sem outras pessoas a quem dar satisfações, pensei em encarar o desafio e encontrar naquela semana alguém que pudesse me dar o valor proposto sem exigir recompensa.
Eu pensava que era fácil, conseguir o valor proposto em um fim-de-semana. Muito engano, logo vi o fim-de-semana entrar na semana, a semana em meses, e os meses em anos. Perdi a referencia do emprego, dos amigos, mudei de cidade em cidade, me sentindo preso a esse compromisso em que tinha empenhado a minha alma. Senti o meu corpo fraquejar muitas vezes nas vicissitudes do tempo, a minha mente perder potencial pela fragilidade que se apoderava do cérebro. Estava perdendo a esperança e procurava muitas vezes me refugiar no abrigo conflituoso de hospitais psiquiátricos, com todo tipo de doente mental, dos quais já me considerava um deles. Nunca procurei a violência e sempre me afastava dos locais onde eu era considerado mal visto.
Foi isso que aconteceu quando você chegou perto de mim e falou do que eu estava provocando dentro do evento. Segui você com suas argumentações e me sentei aqui envergonhado. Fiquei surpreso quando você chegou perto de mim e me agradeceu por eu ter seguido seu conselho e não atrapalhar o evento. Mais surpreso fiquei quando você me ofereceu a nota de 20 reais. Mas eu não podia aceitar valor tão alto que não iria resolver a prisão em que eu tinha entrado. Já estava aceitando que minha vida terminaria numa instituição de caridade. Quando você me entregou a nota de 100 reais, sem exigir nada em troca, foi como se um relâmpago tivesse entrado em meu cérebro e acendido de imediato todos os neurônios. Era a prova de que eu estava certo, que a bondade ainda existe no mundo, apesar de toda a ostentação da maldade. Agora eu posso retomar minha vida com toda essa experiência que adquiri nesses anos.
Procurei lhe dar um abraço apesar de sua aparência, e procurei sair antes que envergonhado ele visse que meus olhos também marejavam. Agora quem tinha a voz embargada era eu, quando disse o adeus.