No livro de Santo Afonso de Ligório, “Instrução aos Católicos – sobre os Mandamentos, os Sacramentos e a Veracidade da Fé”, existe um trecho interessante para a nossa reflexão:
“Mas que necessidade havia de Jesus Cristo padecer por nossa salvação? Escutai. O homem havia pecado e era necessário que o homem desse a Deus uma satisfação justa e suficiente. Mas que digna satisfação o homem podia dar à infinita Majestade de Deus? Em vista disso, o que Deus fez? O Pai mandou que o Filho se fizesse homem, e este homem que foi Jesus Cristo, sendo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, satisfez pelo homem à justiça divina. Vede a obrigação e o amor que devemos a Jesus Cristo. Diz um Cartuxo que um jovem, ouvindo missa, não se ajoelhou às palavras do credo*: et homo factus est (“e se fez homem”). Então, apareceu de repente um demônio com uma clava na mão, e lhe disse: Ingrato! Não rendes graças a Deus que se fez homem por ti? Se por nós tivesse feito o que fez por ti, dar-Lhe-íamos eternamente graças com o rosto por terra; e tu ainda não reconheces tão imenso benefício? E lhe deu uma forte pancada, com a qual não o matou, mas o deixou muito ferido.
*Na Santa Missa tradicional, os fiéis devem se ajoelhar no momento em que o sacerdote fala et homo factus est durante a oração do Credo. Esse costume não foi absorvido como tal pela missa nova de Paulo VI – Nota do Editor.”
Esta narrativa apresentada por Santo Afonso de Ligório deve ser respeitada como toda a narrativa que possuímos, cada uma diferente das outras, que devem ser corrigidas umas as outras de acordo com a coerência com a Verdade que vamos descobrindo lentamente no processo de nossa evolução.
Nesse trecho da narrativa do Santo, muitas interrogações se impõe a minha consciência. Se o homem havia pecado e era necessário que o homem desse a Deus uma satisfação justa e suficiente, verificamos aqui que o raciocínio não se aplica a uma so pessoa, o homem, mas sim a coletividade, a humanidade. Nesse ponto Deus raciocinou que não havia como um só homem se dispor a tal atitude de se sacrificar pela humanidade. O máximo que ele podia fazer era se sacrificar para a própria salvação, mas mesmo assim era difícil, pois ele não tinha a devida noção do Pai universal e dos pecados que era cometido contra a Sua santa vontade de Criador e que espera a melhor evolução de todos os Seus filhos. Ele via que surgia ao longo da história, pessoas iluminadas como Buda, Sócrates, Krishna, e tantos outros, mas que não chegavam perto do necessário para a redenção da humanidade, pois Ele, o Pai, não entrava em consideração existencial.
Portanto, o próprio Deus engendrou essa estratégia dEle mesmo vir na aparência e condição humana, ensinar o Caminho da Verdade que leva à Vida eterna na sintonia com o Divino. Assim, o próprio Deus viria assumir a condição de Salvador para uma humanidade que gozava e sofria os pecados sem saber para onde estava indo. Portanto, a condição humana do Cristo estava consciente de sua missão dada pelo Pai e sustentada pelo Espírito Santo, que na verdade eram todos uma só essência. Viria o Filho dar ao Pai uma justa e suficiente satisfação na condição humana, para a salvação dos pecados da humanidade. Dentro da condição humana Ele não poderia evitar as dores atrozes que iria sofrer no ápice de Sua missão. Ainda sofreu a vacilação que vinha da condição humana, do medo da carne pelo padecer, e pediu ao Pai para afastar tão doloroso cálice de fel. Mas a consciência divina do Pai também era parte dEle, e foi Ele que reconheceu ao final de tão forte sofrimento da carne, que chegou a suar gotas de sangue, que a Sua missão de salvar a humanidade era o que importava, pois foi para isso que veio, pela sua própria decisão de obedecer ao Pai que era parte integrante de si. Foi por isso que respondeu firmemente... mas que seja feita a Tua vontade!
Eis uma narrativa inteligente e elegante para justificar a conduta do Cristo, nos seus ensinamentos entre nós. A Santa Igreja Católica tem a responsabilidade de passar essas informações para a humanidade, com a obrigação de usar a inteligência para melhorar cada vez mais a percepção do homem em qualquer lugar do mundo e em qualquer condição social, sobre a revelação divina que o divino Mestre nos trouxe. A Santa Missa é um desses instrumentos que servem para mostrar qual foi a missão do Cristo entre nós. Mas confesso que desde criança, batizado como católico, ajudante nas missas que o padre fazia, nunca tive essa percepção que tenho hoje do sentido que a missa traz, de mostrar de cada vez, de forma incruenta todo o sacrifício cruento que o Cristo sofreu para nossa salvação. Eu repetia as palavras-chave, de “Cristo é nosso Salvador”, “Fora da Igreja não há salvação”, “Jesus é filho único de Deus”, mas todos sem fazer uma conexão inteligente da vontade de Deus na salvação da humanidade entregando a missão ao Filho, que era Ele mesmo, através da força da Sua própria essência que é o amor do Espírito Santo.
Quando a Igreja resolve fazer a Missa na língua compreensível para os povos que a assistem, foi um passo importante de atualização. Como uma pessoa que não entende o latim, iria se considerar grato a vinda de Jesus, como Deus que se fez homem para nossa salvação, e por gratidão ter de se ajoelhar nessa ocasião? Portanto, são aperfeiçoamentos dessa natureza que ajudam o nosso racional a entender a dimensão do sacrifício de Jesus e o amor de Deus por dar por missão ao Seu filho, engendrado em si mesmo, para nos mostrar o caminho da salvação na Sua condição humana.
Sinto que a minha própria narrativa foi fortalecida com a narrativa que o Santo Afonso de Ligório apresentou, e dessa forma, quando eu apresentar a minha narrativa já corrigida e aperfeiçoada, irá ajudar outras pessoas a corrigirem suas próprias narrativas e assim a humanidade corrigirá seu cognitivo e mais facilmente encontrarão o Caminho que o Mestre divino veio nos ensinar.