Sióstio de Lapa
Pensamentos e Sentimentos
Meu Diário
15/01/2025 00h01
NASCER DE NOVO

            A principal tarefa do discípulo de Jesus é reproduzir os ensinamentos que fizeram a nossa conversão, saindo do meio dos animais, egoístas selvagens, reconhecendo o Pai divino e procurando fazer a Sua vontade, que é a de trazer os irmãos perdidos na ignorância, no emaranhado das mentiras e falsas narrativas, para o Caminho da Verdade.



            Observamos no encontro do Mestre com Nicodemos, um venerando rabino da sinagoga de Israel, esta lição que leva à transformação individual.



            Nicodemos estava impressionado com os prodígios que Jesus realizava no meio do povo, e abre sua conversa da seguinte forma: - Mestre, nós sabemos que vieste da parte de Deus para ensinar, porque ninguém pode fazer os prodígios que tu fazes a não ser que Deus esteja com ele.



            Nicodemos se mostra como discípulo, mesmo ele sendo mestre em Israel, e Jesus não era rabino como ele. Mesmo assim, ele se senta humildemente como discípulo aos pés de um verdadeiro Mestre, que talvez tivesse a metade de sua idade.



            Mas, apesar dessa humildade, o pensamento de Nicodemos se move ainda no plano horizontal do “fazer algo”. Parece nada saber do conhecimento vertical do “ser alguém”. Prodígios, milagres, fenômenos – é isto que impressiona Nicodemos, como impressiona todos nós que somos dominados pelo ego, mesmo os de boa vontade: fazer algo, dizer algo, ter algo...



            Jesus, porém, não reage com uma só palavra a essa mania fenomenológica do visitante. Silenciosamente, passa a conversa para outra dimensão. E inicia a sua resposta com um duplo “amen”, como todas as vezes que procura dar grande ênfase às suas palavras – “Em verdade, em verdade (amen, amen) te digo: quem não nascer de novo pelo espírito não pode ver o reino de Deus”.



            Nascer de novo? Nicodemos acha tão impossível esse processo de renascimento que reage com uma pergunta meio pilhérica: - “Como pode um homem nascer de novo, quando é velho? Será que pode outra vez entrar no ventre de sua mãe e tornar a nascer?”.



            Certamente, Nicodemos só pensa em renascimento material, numa reencarnação física. Jesus não nega a possibilidade desse fato, mas não está interessado em fatos, e sim em valores. Da mesma forma que Einstein escreveu séculos mais tarde: “Do mundo dos fatos não conduz nenhum caminho para o mundo dos valores, porque estes vêm de outra região”. Que aconteceria se o homem reencarnasse fisicamente 100 ou mais vezes? Seria apenas um acontecimento objetivo, produzido por outras pessoas, mas não seria uma creação de valores subjetivos, única condição válida para ver o reino de Deus.



            Fatos físicos não interessam a Jesus, somente valores metafísicos. O reino de Deus não é algo que acontece ao homem por obra e mercê de terceiros, é algo que ele mesmo produz dentro de si, pelo poder do livre-arbítrio, pela íntima substância do seu ser, e não é algo que lhe aconteça pelas circunstâncias da natureza ou dos outros homens. O reino de Deus é uma autêntica creação do Eu espiritual, e não uma fortuita produção de egos alheios.



            Mas, Nicodemos está confuso. Mergulha num longo silêncio, meditando, afagando pensativamente a sua barba branca e por fim murmura: - Como pode ser isto?”...



            Responde-lhe Jesus: - “Como? Tu és mestre em Israel e ignoras isto?”.



            Fica na pergunta que Jesus faz o que vai no seu íntimo, sem querer ofender ao idoso Nicodemos... Que é que um mestre espiritual deve ensinar senão o caminho para esse nascimento espiritual? E como pode ele mostrar o caminho aos outros, se ele mesmo ignora? E Jesus repete, com grande ênfase o que dissera, acrescentando mais uma palavrinha: - “Em verdade, em verdade te digo: quem não renascer pela água e pelo espírito não pode entrar no reino de Deus”.



            Este binômio água-espírito que Jesus reforça é mais complexo. Pode ser entendido como o batismo feito pela água como uma fórmula sacramental. Mas, a água é o líquido que envolve o corpo do nascituro que relaciona as palavras do Mestre com um renascimento físico. Na Grécia antiga a água era considerada como a matéria-prima de todos os elementos físicos, que constituem o mundo e o nosso corpo. E o homem é bipolar, alma e corpo. O renascimento pela água e pelo espírito significa o renascimento do homem total, a transformação do seu Eu espiritual e do seu ego material.



            Essa transformação não pode ser operada por agentes externos ao ser individual, mas por sua própria individualidade, pela onipotência do seu livre-arbítrio, pelo despertamento da centelha divina que está dentro de nós.



            Esse despertamento não depende da matéria, mas sim do espírito. Quer o homem tenha um corpo material ou não, o seu livre arbítrio pode realizar esse renascimento “pela água e pelo espírito”, aqui na Terra ou em qualquer outra morada da casa do Pai.



            Enquanto Jesus e Nicodemos estavam num profundo silêncio, sentados na varanda da casa, passou uma ligeira brisa pelas folhas de uma palmeira em frente à varanda se ouvindo ligeiro sussurro. Jesus, contemplando a árvore, disse, vagarosamente: - O sopro sopra onde quer, bem lhe ouves a voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim, também acontece com todo homem que nasceu pelo espírito”.



            Jesus se refere ao sopro ou vento material que agita as folhas da palmeira e produz ligeiro ruído. Vê-se o movimento, e ouve-se o ruído, mas não se percebe a causa invisível desses efeitos visíveis. Quer mostrar que a causa do nascimento espiritual do homem é tão misteriosa como a do movimento e do ruído da palmeira. Ninguém sabe da origem desse renascimento, nem sabe o seu fim. Ninguém sabe por que um homem renasce pelo espírito, e ninguém sabe do que é capaz esse homem. Para ele são possíveis as coisas mais impossíveis – ele é capaz até de fazer be aos que lhe fazem mal e amar aqueles que o odeiam. Ninguém sabe donde vem esse sopro espiritual e para onde vai esse sopro... visível é a ética do homem que sentiu o sopro da mística – mas que é esse sopro místico? Donde vem? Para onde vai?...



            Quando Nicodemos se retirou, passava da meia-noite. Nos horizontes de sua alma clareava um novo dia, ainda agora tênue luz de alvorada, mais tarde o zênite do sol do meio-dia.



            Três anos mais tarde encontramos esse tímido rabino transformado em corajoso discípulo do Mestre divino. Esse mesmo Nicodemos que se escondia para falar com Jesus, mais tarde tem a coragem de se professar publicamente amigo do crucificado, um homem execrado como blasfemo pela autoridade religiosa de Israel, e sentenciado como um criminoso pela autoridade civil do Império Romano.



            Houve um renascimento espiritual, sem que houvesse nenhum renascimento material. Esse renascimento começou nas trevas da noite, em Jerusalém, e culminou em plena luz do sol, nas alturas do Gólgota, onde reaparece Nicodemos e se oferece junto a José de Arimatéia para oferecer sepultura digna ao corpo do crucificado.



            O sopro sopra onde quer...  


Publicado por Sióstio de Lapa
em 15/01/2025 às 00h01