A experiência mística de Francisco de Assis é muito forte. Desde sua abdicação da vida material, do nome dos pais, do conforto e respeito que tinha na cidade, por uma compreensão da vontade de Deus que veio na sua mente. Recebeu como uma missão de vida imitar os passos do Mestre Jesus na senda da pobreza, caridade e humildade. Foi exemplo para diversos outros jovens, de sua cidade, do seu país e do mundo. O que me impressiona é a sua capacidade de aceitar os diversos martírios que Deus lhe proporcionava, principalmente o martírio da alma a fogo lento. Ele sabia de suas deficiências e a sensação de fracasso o atormentava. A impressão de incapacidade o crucificava. Volta e meia tinha a consciência de ser um pecador. Com que cara poderia apresentar-se ao mundo falando de amor, se o amor não reinava em sua própria casa? Como poderia transmitir uma mensagem de paz, se a paz não se aninhava em sua alma?
Sentia um desejo profundo de voltar para os eremitérios a fim de viver acocorado aos pés de Deus, podendo recuperar a paz por completo. Mas o Senhor tinha lhe dado um povo de irmãos. Ele não os havia escolhido, como Jesus escolheu os apóstolos. Simplesmente aceitara-os das mãos de Deus como oferta. Aceitara-os como eram, com seus defeitos e qualidades. Não podia abandonar esse povo, porque seria como abandonar o próprio Senhor!
Fico a imaginar a proximidade e a distância que tenho do Irmão de Assis. Proximidade por sentir que Deus pode colocar Sua vontade em nossos pensamentos, por sentir que Ele já fez isso em minha mente. Tenho hoje um caminho a seguir, bem definido sobre o que tenho de fazer. Não sei aonde irei chegar, assim como Francisco, só sei que é isso que Ele quer que eu faça, e o farei. Isso é o que me aproxima de Francisco de Assis. Agora, eu sei que não tenho a resistência que ele tinha de se auto anular completamente e se tornar o menor entre os menores, o mais humilde, o mais despojado, para mostrar ao mundo que a influência do materialismo em todas suas dimensões não tinha poder sobre ele. Tenho uma preocupação significativa de manter um padrão de vida confortável, com recursos suficientes para garantir uma boa estabilidade financeira. Mas tenho a compreensão que tudo pertence a Deus e ele me permite que eu tenha esses recursos materiais, mas com a responsabilidade da solidariedade entre os irmãos, entre o próximo.
Agora, o que me deixa mais pensativo é com respeito as ofertas do Senhor, no sentido de colocar os irmãos ao seu lado para exercerem o companheirismo na estrada que ele determinou. Começo a perceber com clareza cada vez maior que Ele fez o mesmo comigo. Determinou a estrada que eu deveria percorrer e fez as ofertas das pessoas que deveriam partilhar comigo dos espinhos da estrada. Como Francisco, as recebi como se apresentaram, com seus defeitos e qualidades. Tem também uma diferença básica, para Francisco os companheiros mais importantes para a finalidade da jornada, eram todos homens. Até Clara, companheira de alta sintonia espiritual, ficou sempre afastada em outros ambientes. Para mim, o Senhor determinou a tarefa de mostrar ao mundo que é possível privilegiar o Amor Incondicional frente a qualquer outra força que se oponha, principalmente a força do Amor Romântico, que na forma de paixão pode destruir e construir mundos. Assim, ofertou sempre mulheres para essa operacionalização, mulheres que sempre chegam carregadas de amor romântico, que o desenvolvem até o nível da paixão e que me colocam em cheque no embate da exclusividade que elas exigem e da inclusividade que faz parte da natureza da minha missão. Quando li que Francisco não podia abandonar os irmãos que Deus lhe ofertou, pois isso seria como abandonar o próprio Deus, senti uma forte sintonia no meu coração, pois também sinto que não posso abandonar nenhuma das irmãs que Deus me ofertou. Mesmo que antes eu não tivesse a ideia que Francisco me deu, que eu estaria abandonando o próprio Deus.
Quando fiz todas essas considerações, na minha mente surgiu um forte sentimento de plenitude, como se eu tivesse recebido mensagem do próprio Deus. As lágrimas corriam e do meu coração surgia o desejo de louvar, dos meus lábios saiam palavras entrecortadas pela emoção. Quando acalmei um pouco, peguei no celular e mandei para todas minhas companheiras uma mensagem sobre um pouco desse momento, mesmo correndo o risco de ser considerado por algumas, como isso ser sinal de loucura, mas esse risco Francisco também correu, e pelo menos nesse simples aspecto eu posso ter a coragem que ele teve:
Eu tenho a Graça do Pai...
Recebo a Graça do Pai...
Agradeço ao Pai toda honra
De ser o seu escolhido
Para instrumento da sua vontade
Eu tenho a Graça do Pai...
Na audiência de 15-03-06, na Praça de São Pedro, o Papa Bento XVI disse o seguinte: “A intenção de Jesus de reunir a comunidade da Aliança para manifestar nela o cumprimento das promessas feitas ao Pai, com a implicação de convocação, de unificação, de unidade, é a instituição dos doze apóstolos. Ele disse que os queria para junto de si e eles corresponderam. Instituiu os doze para serem seus companheiros e para enviá-los a pregar com o poder de expulsar o demônio. Jesus com uma iniciativa que manifesta absoluta confiança e determinação, constituiu os doze para que sejam com ele testemunhas e anunciadores do advento do Reino de Deus. Ao escolher os doze, introduzindo-os numa comunhão de vida junto a si e tornando-os participantes de sua missão de anúncio do Reino em palavras e ações, Jesus quer dizer que chegou o tempo definitivo no qual se constitui novamente o povo de Deus, o povo das doze tribos, que agora se torna um povo universal, a sua igreja.
“Com a própria existência, os Doze – chamados de proveniências diferentes – se tornam um apelo para todo Israel, para que se converta e se deixe reunir na nova Aliança, pleno e perfeito cumprimento da antiga. Ter confiado a eles, na Última Ceia, antes de sua paixão, a tarefa de celebrar a sua memória, mostra o quanto Jesus desejava transmitir a toda a comunidade, na pessoa dos seus chefes, o mandato de serem, na história, sinal e instrumento da reunião escatológica, nele iniciada. Em certo sentido, podemos dizer que precisamente a Última Ceia é o ato da Fundação da Igreja, porque Ele se oferece a si mesmo e cria, assim, uma nova comunidade; uma comunidade unida na comunhão com Ele. Os doze apóstolos são, então, o sinal mais evidente da vontade de Jesus em relação à existência e à missão de sua igreja.
“Não podemos ter Jesus sem a realidade que Ele criou e na qual se comunica. Entre o Filho de Deus feito homem e a sua Igreja, existe uma profunda, inseparável e misteriosa continuidade, em virtude da qual Cristo está presente hoje no seu povo. Ele é sempre contemporâneo nosso, é sempre contemporâneo na Igreja construída sobre o fundamento dos apóstolos. E essa sua presença na comunidade, na qual ele próprio se oferece sempre a nós, é a razão da nossa alegria. Sim, Cristo está conosco, o Reino de Deus vem.”
Essa mensagem do Papa Bento XVI mostra sua preocupação em firmar os fundamentos da Igreja Católica sobre os fundamentos do trabalho dos doze apóstolos escolhidos pelo Cristo. Mostra que houve uma evolução da antiga Aliança entre as doze tribos de Israel para a nova Aliança constituída pela unidade dos 12 apóstolos em sua diversidade e atuação universal. Agora chega o momento de mais uma vez ser feita uma nova aliança dentro desse processo evolutivo em busca do Reino de Deus. Agora são os relacionamentos afetivos, íntimos, sexuais, do amor romântico, a base da estrutura familiar nuclear, que devem ser construídos com o rigor do Amor Universal, para que não haja desvios para outras funções menos nobres, de fundo egoísta. O relacionamento homem-mulher então se tornam o principal foco das transformações. A novíssima Aliança deverá ser baseada no compromisso do casal em manter sua relação sempre aberta para o fluxo do amor incondicional em todas as direções, sem exclusivismo de ninguém e de solidariedade entre todos. Isso implica que esse casal não pode ser exclusivista. Poderá ser aplicado o mesmo número de doze como sinalização de disseminação dessa comunidade como aconteceu com as duas outras Alianças que foram estabelecidas?
Olhando para o retrato que tenho pregado na parede do meu apartamento, com a idade aproximada de 6 meses, onde estou despido, sentado numa cadeira forrada por lençóis, com um sapatinho com meia, uma medalha de um santo no pescoço, acredito de
São Francisco, já que fui prometido a ele devido ameaça de morte ao nascer, da dificuldade de atravessar o canal do parto. Estou com a aparência de surpresa, olhando para um lugar à distância, um pouco à direita, com a mão esquerda em posição de executar alguma ação, enquanto a direita se firmava no apoio da cadeira.
Interessante e o que chamou mais a minha atenção foi essa posição da mão. Acabo de postar no meu site no Recanto das Letras e no Facebook, uma foto que tinha tirado há algum tempo e que ficara armazenada no notebook sem maiores pretensões. Encontrei semana passada essa foto por acaso e resolvi substituir minha foto antiga por essa. Agora, vendo a foto do tempo de criança, vejo a similaridade que tem uma com a outra, respeitando as devidas transformações causadas pelo tempo, tanto na biologia quanto nos pensamentos e sentimentos.
É uma fase da vida colocada em um dos polos, o nascimento (estava com 6 meses); hoje estou me dirigindo para o polo oposto, a morte (estou com 60 anos). Naquela época a inocência predominava, era meu o Reino dos Céus, como Jesus ensinou. Ao longo da vida a força do egoísmo entranhada na biologia dominou o meu corpo e pensamentos e perdi a condição de permanecer nesse Reino. Agora que já estou me aproximando do polo seguinte da vida, procuro adquirir a inocência perdida aprendendo a sabedoria dos livros sagrados e dos Mestres instrutores, como Jesus Cristo. Quero vencer o monstro do egoísmo.
Ontem eu tirava essa foto despido, sem nenhuma preocupação, sem nenhum preconceito; hoje eu vou a uma praia de nudismo, fico despido e tento vencer o preconceito que se instalou em minha consciência. A criança de ontem olha o mundo ao seu redor com surpresa e quer alcançar algo que sua consciência despertou; o homem de hoje olha os contornos de uma cidade moderna, de uma selva de pedras, escurecida nas sombras da noite. Esse homem tem a cabeça nas estrelas e com a mesma mão esquerda procura alcançar ou abençoar aquelas estruturas que sabe fervilhar de seres humanos.
Procuro mais uma vez ter a condição de viver no Reino de Deus e agora com a compreensão adicional que devo usar os recursos da inteligência que o Pai me deu para ajudar cada um dos meus irmãos menos esclarecidos, mergulhados na ignorância, para que possam corrigir seus defeitos e encontrar o caminho coletivo onde o Pai nos espera.
O mal está tão presente no mundo que pensamos muitas vezes estarmos num beco sem saída, despencando de forma irreversível em um abismo de violência, corrupção, fome, miséria, guerras... mas não é bem assim. Desde que Jesus chegou e deixou suas lições entre nós, ficamos capacitados a reagir contra o mal, a usar o amor como forma de conversão. Criamos instituições para ensinar, doutrinar, cuidar; sentimos a vocação de participar em qualquer uma dela e vamos em frente; podemos vestir uniformes, em escolas, igrejas, mosteiros, hospitais... ou não, simplesmente atuando no bem com a inspiração e vocação do Mestre. São esses os soldados do Cristo, uniformizados ou não, que podemos encontrar em qualquer local, em qualquer momento, principalmente onde reina a miséria e a desolação. A sua identificação é clara, são suas obras, os seus trabalhos que falam por si. Não é preciso de carta de recomendação para atendê-los, muitas vezes eles fazem o que pretendíamos fazer, mas que por um motivo ou por outro nunca o realizamos.
Encontrei um soldado desse tipo e logo percebi que estávamos sob o comando do mesmo Mestre. Mostrou o campo que existe, o trabalho a ser realizado, a estratégia que está organizando. Notei que é preciso da ajuda de muitos, não é trabalho de jaez individual, precisa da mão e da expertise de muitos. Percebi que eu tenho a minha missão posta em minha consciência, da mesma forma que o soldado expõe a natureza de sua missão. Que não são missões semelhantes, pois cada um recebe na sua consciência uma missão característica de sua personalidade, de sua capacitação no desempenho de qualquer que seja a atividade. Mas isso não impede que um não possa ajudar o outro de forma solidária e é isso que o Mestre espera de cada um de nós: que cumpramos a nossa missão e que possamos ajudar um ao outro num sentido de solidariedade na ajuda ao próximo no sentido da fraternidade.
As forças do mal podem até reagirem de forma agressiva, impeditiva, contra aquilo que precisamos fazer, até mesmo incorporadas nas pessoas que são caras afetivamente para nós, como uma mãe, um pai, um filho,um irmão, um companheiro, um amigo, mas o soldado do Cristo já tem em mente, bem esclarecido qual seja a sua missão e não pode mais recuar: está pronto para fazer a vontade do Pai, cumprindo o comando do Mestre.
Francisco de Assis, um homem que exalava paz e amor por onde caminhava, foi acusado de ser um Sonhador Perigoso. O Cardeal Hugolino que era o seu amigo e admirador foi quem lhe advertiu. Avisou que na Cúria Romana havia um grupo de poderosos cardeais que não viam com bons olhos, nem ele nem sua Fraternidade. O chamavam antes de Sonhador, mas agora chamavam de Sonhador Perigoso. Dizia que a Cúria recebia cerca de 30 notícias positivas e três negativas sobre ele e a fraternidade, mas para quem é negativo, a realidade resume-se a essas três notícias desfavoráveis. E continuava com as observações: você não deve se afastar do seu rebanho para evangelizar à distância, seu rebanho corre perigo, o bom pastor ronda, vigia e toma conta do seu rebanho; você foi temerário, meu filho, mandando seus irmãos indefesos a regiões remotas, expostos a todo tipo de contradição; você precisa de circunspecção, de sabedoria, medir as forças e saber com quem está lidando; que é o homem para comparar-se com Deus? quem poderá emular Cristo? Iríamos alem da temeridade, isso seria atrevimento e no fundo estupidez; nós somos filhos do barro, é coisa que não temos que nos envergonhar, apenas reconhecer; o espírito e a liberdade são bons, porém, se não forem devidamente canalizados, descontrolam-se e acabam arrastando tudo o que encontram para desaparecer na mais completa esterilidade; temo que aconteça alguma coisa assim com sua fraternidade, você foi longe demais!
Francisco entrou em profunda tristeza com tudo que ouviu, pela primeira vez começou a perder a segurança, a alegria de viver, pois imaginava que estava fazendo tudo conforme a vontade do Senhor, mas procurou responder: todas as coisas tem casca e miolo, verso e reverso, Senhor Cardeal; conheço a linguagem dos intelectuais da Ordem, um exército compacto, bem preparado e bem disciplinado a serviço da Igreja; falam de disciplina férrea, de organização poderosa; essa é a linguagem dos quartéis, do poder, da conquista; minhas palavras são outras, manjedoura, presépio, calvário; os ministros tem um palavreado cativante, mas é casca, senhor Cardeal, ou se me permite, é caricatura; a realidade é outra, ninguém quer ser pequenino, ninguém quer parecer fraco, nem nos tronos nem na igreja; todos somos inimigos instintivos da cruz e do presépio, a começar pelos homens da Igreja; somos capazes de derramar lágrimas diante do Presépio e de nos sentirmos orgulhosos levantando a cruz nos campos de batalha, como fazem os cruzados; temos porém vergonha da cruz; não chamarei ninguém de farsante, mas isso é uma farsa, quase uma blasfêmia; ninguém é mau, mas nós nos enganamos; as coisas feias precisam de aparência bonita; o mundo que existe dentro de nós precisa de uma roupagem vistosa; o homem velho, o soldado que vive dentro de nós, quer dominar, emergir, ser senhor; este instinto feio veste-se de ornamentos sagrados e nós dizemos que é preciso confundir os albigenses, temos que aniquilar os sarracenos, temos que conquistar o Santo Sepulcro... no fundo é o instinto selvagem de dominar e prevalecer; a verdade é que ninguém quer parecer destituído de poder; nós dizemos que Deus está por cima, deve predominar, mas somos nós que queremos estar por cima e predominar e para isso subimos no trampolim do nome de Deus; Deus nunca está por cima, está sempre abaixado para lavar os pés de seus filhos e servi-los, ou está pregado na cruz, mudo e impotente; na verdade, ninguém quer parecer pequeno e fraco, nós temos vergonha da manjedoura, do Presépio e da Cruz do Calvário, senhor Cardeal; a Igreja tem pregadores demais que falam maravilhosamente sobre a teologia da Cruz, mas o Senhor não nos chamou para pregar brilhantemente o mistério da Cruz. E sim para vivê-lo humildemente.
As palavras de Francisco faziam eco em meu coração e as lágrimas não se recusaram em testemunhar. Aquele pequenino homem, armado com sua fé, colocava em frangalhos todas as advertências caridosas do seu amigo Cardeal. Colocava o dedo na ferida que ninguém ver, nas palavras bonitas que são proferidas sem o devido suporte da prática da caridade. Eu me senti admoestado também pelo Cardeal, mas me senti defendido por Francisco! Afinal, eu como ele, procuramos seguir a vontade de Deus, seguindo Cristo como professor e assumindo determinado campo de atuação. Ele assumiu a graça de ter percebido a vontade de Deus em sua consciência e atuava no campo da pobreza, da caridade, da humildade para provar que era possível viver como o Cristo viveu. Eu, assumo a graça de perceber na consciência que Deus deseja que eu atue no campo dos relacionamentos com base no Amor Incondicional para provar que é possível criar as condições da família universal, base do Reino de Deus na terra.
Como Francisco, meu principal escudo e fonte de inspiração é o evangelho, são as lições que Jesus deixou e que foram registradas por seus apóstolos. Como Francisco, procuro ser o mais honesto com a essência dos ensinamentos e evito a hipocrisia de falar uma coisa e praticar outra. Como Francisco, também sou considerado um Sonhador Perigoso e em algumas casas sou impedido de entrar, por praticar o amor inclusivo, sem barreiras, sem preconceitos, altruísta, solidário e eterno! Onde eu encontraria um defensor a altura dos meus acusadores, que entendesse a natureza dos meus pecados? Somente em Francisco de Assis!