Dentro da estrutura atual da cultura ocidental, casamento implica na exclusão de vários relacionamentos em função de um único. A pessoa escolhe outra para se relacionar afetivamente por toda a vida, com a proposta de gerar filhos, fazer uma família nuclear, com base no amor exclusivo e assim se relacionar com as demais pessoas que devem seguir os mesmos princípios. Mas tem um significado da máxima importância, que está implícito dentro do conceito – casamento, e que extrapola o mero relacionamento de uma pessoa com outras. É o significado de compromisso prioritário da pessoa com um princípio de vida. Foi isto que São Francisco de Assis queria dizer quando iria desposar a mais bela e sábia das noivas, os ensinamentos cristãos trazidos por Jesus de Nazaré. Ele extrapolou de um mero relacionamento entre pessoas para um relacionamento com um princípio de vida, onde os relacionamentos pessoais são condições figurantes, mas não protagonistas principais. Com esse casamento idealizado ele passou a praticar na sua vida, não havia espaço para relacionamentos afetivos com outras pessoas, para a geração de filhos, para formar uma família nuclear. Sua opção foi feita para os pobres, para os amparar e consolar como filhos do mesmo Pai e que estavam desamparados pela injustiça solidária das leis humanas. Foi fiel ao seu casamento até o fim da sua vida, como se deve esperar de pessoas íntegras, que procuram cumprir com honestidade os seus compromissos.
Eu já fui casado por duas vezes. Na primeira eu pensava dentro dos padrões tradicionais, culturais. Mas com o passar do tempo percebi que existiam forças dentro e fora de mim que repudiavam esses compromissos assumidos e lentamente a minha consciência se dirigiu para outro paradigma de vida. Foi essa mudança de paradigma ocorrida em minha vida que encontro paralelo na mudança de paradigma que aconteceu na vida de São Francisco. Também como ele, a base de minha transformação estava alicerçada nos ensinamentos do Mestre Jesus. Fiquei encantado com a beleza e sabedoria da noiva que Ele apresentava, seu evangelho. Também me dispus a casar com ela e isso implicava em obedecer de forma integral e sem subterfúgios à Lei do Amor e os seus principais artigos: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a mim mesmo. A minha fidelidade enquanto esposo honesto ficou associado a esses princípios e a todos que a ele se associem. Portanto, todos os outros compromissos gerados das mais diversas formas de relacionamentos ficam a esse subordinados. Podem até serem representados por pessoas importantes dentro de nossos afetos, como pai, mãe, filhos, irmãos e demais parentes e amigos, mas a prioridade de minhas ações estarão sempre condicionadas aos interesses da minha esposa, os ensinamentos do Cristo e seu corpo de praticantes. É importante que todos os meus afetos significantes tenham conhecimento deste meu casamento, para que sintam a profundidade do meu comportamento e que não se sintam melindradas por minhas decisões. Fica também entendido, que o casamento tradicional para mim perdeu o sentido como também perdeu para São Francisco.
Agora existe uma diferença marcante entre mim e São Francisco. Ele fez a opção pela pobreza e a continência sexual para obter no mundo espiritual o Reino de Deus. Eu faço a opção pela dignidade humana e pela sexualidade fraterna para construir o Reino de Deus no mundo material. Sei que todos somos seres espirituais passando por experiências materiais, que somos todos filhos do mesmo Pai e que devemos fazer a sua vontade aqui na terra como nos céus. Assim, cada um de nós tem a missão que o Pai coloca em nossa consciência, como aconteceu com São Francisco, como acontece comigo e com qualquer pessoa. As formas de executar nossas missões sempre recebe o apoio e ajuda de amigos encarnados e desencarnados, quando está na trilha do Senhor.
Sei que recebo constante ajuda desse tipo e isso fortalece minha vontade de continuar na trilha do Senhor, mesmo que isso traga sofrimento em muitas ocasiões, pois os interesses egoístas ainda são fortes em nossos corações. Estar casado com os princípios cristãos, implica em divórcio imediato dos interesses materiais, egoístas!
São Francisco de Assis, antes de dar a conhecer o seu ministério, respondia as indagações dos amigos, de que casar-se-ia com a mais nobre e mais bela esposa jamais vista. Pela beleza excederá as outras, pela sabedoria superará a todas e assim encontraria um tesouro escondido. Todos pensavam ainda no aspecto material, de uma bela jovem, inteligente e rica. Ninguém imaginava ainda com essa resposta, que Francisco usava parábolas para expressar o que começava a sentir no seu íntimo. Não se tratava de uma esposa tradicional, do campo material e sim, tudo era aplicado ao campo espiritual. A esposa que Francisco começava a se apaixonar e entregar toda sua vida a ela, era a verdadeira religião que emanava dos ensinamentos do Cristo, cheios de beleza e sabedoria, que ligava a criatura ao Criador; o tesouro escondido se achava na aplicação desse casamento e na relação com o próximo, criando assim o Reino dos Céus.
Este pensamento de Francisco pode ter uma boa utilidade para mim, posso usar como modelo para qualificar o meu próprio pensamento e talvez deixar as pessoas com mais facilidade de compreensão quanto aquilo que defendo e pratico no campo espiritual. Também flerto com essa noiva espiritual e acredito que poderei me apaixonar tanto quanto Francisco por ela. Também desejo partilhar do tesouro escondido do Reino dos Céus. Porém o meu caminho difere de forma significativa do de Francisco, com relação aos bens do mundo, ao envolvimento afetivo com as mulheres.
Os votos de pobreza defendidos por Francisco não se aplicam a mim. Acredito que Deus tenha me deixado com a missão de cuidar dos bens materiais que eu puder adquirir com a Sua permissão e os administrar de acordo com sua vontade, uma espécie de administrador dos Seus recursos materiais.
Quanto as mulheres, também tenho uma visão diferente. Reconheço a importância da analogia com os ensinamentos de Jesus, a formação de uma igreja ideal onde esses ensinos sejam trabalhados e divulgados. Representaria essa igreja a noiva bela e sábia. Mas enquanto em Francisco não há nenhuma possibilidade do homem aprofundar o amor com uma mulher e seguir no campo material até a relação sexual, com respeito total à noiva espiritual, meu pensamento é que esse aprofundamento afetivo pode e deve ocorrer, mas sempre com o suporte e prevalência hierárquica dos valores espirituais. O ponto comum nesse pensamento, é que as mulheres saibam que existe um compromisso prioritário com a igreja, com o pensamento de Cristo, e dessa forma elas não podem exigir em nenhum momento exclusividade desse amor que elas experimentam. O compromisso com minha noiva espiritual aceita e até orienta que eu distribua o amor que o Pai permite que eu tenha por tantos corações quantos for conveniente.
Hoje, domingo, dia que convida ao lazer com os amigos e parentes, principalmente. Como sempre é bom associar o aspecto espiritual aos comportamentos materiais, fizemos uma reunião de reflexão tendo como base um dos contos relacionados com a passagem de Jesus na terra e a evolução que Ele observou em um discípulo, até o ponto em que esse discípulo se equiparou ao Mestre. Depois da leitura e reflexão, pedi que cada um colocasse em uma palavra aquilo que mais desejava obter de Deus. foram citados a fé, união, perdão, servir, humildade, sabedoria. Eu, por caminhar por veredas tão criticadas por pessoas do meu mais íntimo círculo afetivo, pedi ao Pai a sabedoria para que eu pudesse discernir com segurança qual a vontade dEle com relação ao trabalho que devo fazer, para que eu não entre em atalhos que não tem nada a ver. Por outro lado, a pessoa que pediu o “servir” e defendeu a sua importância no cumprimento da vontade de Deus, deu demonstração de intolerância com relação a isso. Uma das nossas amigas adoeceu e foi acolhida na casa do nosso lazer. Essa pessoa logo fez críticas severas a esse comportamento, pois iria estragar o lazer de todos devido essa doença entre nós. Mas existia ainda um argumento forte que a protetora da amiga terminou usando para o convencimento do pensamento contrário. Que eu iria chegar para participar do lazer e na condição de médico eu poderia ajudar. Assim aconteceu. Ao chegar encontrei a amiga doente e vi que o remédio era insuficiente para conter sua crise. Foi necessário eu acompanhá-las até o hospital e fazer todos os procedimentos para uma conduta mais adequada e evitar o internamento, que era o desejo de todos, que o tratamento fosse realizado em sua própria residência.
Voltei para o lazer já na parte da tarde com tudo resolvido, mas já tínhamos perdido toda a manhã do nosso lazer, além do trabalho realizado para conter a crise de nossa amiga. Passei a fazer uma reflexão sobre essa ocorrência no grupo de nossos amigos, todos portadores de uma boa espiritualidade. A pessoa contrária a esse acolhimento que fizemos, é um profundo conhecedor da leitura bíblica, chega a citar capítulos e versículos para ilustrar seus posicionamentos. Também é uma pessoa que não se esquiva do trabalho e enquanto íamos ao hospital ele ficou na casa do lazer e podou árvores, fez limpeza, tirou cupins... tudo isso e não demonstrou nenhuma contrariedade, mas sim alegria pelo fato de poder ter servido. Então, por que tão forte resistência em não ajudar a amiga doente, já que este também seria uma forma de servir e até mais nobre, pois iria ajudar o semelhante? Ai, só me veio uma explicação: ele deve ter se sentido ameaçado pela demanda de um serviço que ele não tinha competência, não sabia como fazer e a quem recorrer, então a saída era se esquivar. Acredito que se ele tivesse o conhecimento que tenho, não existiria nenhuma resistência nele, como não existiu em mim. Veio a minha mente então mais uma constatação: a ignorância é uma espécie de cupim na estrutura de nossas virtudes e só podemos fazer a dedetização com o uso da verdade, tanto do mundo externo quanto do mundo interno.
E para terminar esse relato de um dia de lazer que trouxe tão forte oportunidade do servir ao próximo, transcrevo abaixo o pensamento de Thomas Merton que nos ajudará a fortalecer e preservar tão belo gesto:
“Não existimos para nós mesmos, como se fôssemos o centro do universo, e é somente quando estamos convencidos deste fato que começamos a amar a nós mesmos adequadamente e, assim, a amar aos outros. O que quero dizer com nos amarmos adequadamente? Quero dizer, em primeiro lugar, desejar viver, aceitar a vida como uma dádiva muito importante e um grande bem, não por causa do que ela nos dá, mas por causa do que nos permite dar aos outros.”
Minha amiga depois de ler os textos que coloquei no blog no mês de setembro, fez as seguintes considerações: “Parece, meu amigo, que toda leitura que voce faz dos livros sagrados, procura sempre dar a interpretação que voce deseja, que atende melhor aos seus desejos. Percebi também a sinceridade de suas palavras, nas suas crenças, mas você está deslocado. Acredito com firmeza que seu espírito é originário das culturas orientais e por algum motivo seu renascimento foi deslocado para a cultura ocidental. Então você tenta aplicar com toda a naturalidade um comportamento poligâmico que está estruturado em seu coração. Agora, não percebe o mal que está causando as mulheres com as quais se envolve e por isso vai ter que pagar.”
Ouvi tudo em silêncio. Sabia que ela estava sendo honesta naquilo que pensava, e que eu deveria refletir nas críticas que ela fazia.
Primeiro, será verdade que uso um filtro pessoal nas leituras dos livros divinos que costumo ler e que procuro seguir? Mas procuro aplicar nas minhas ações a principal lei que nos foi ensinada por Jesus, a Lei do Amor, do amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a mim mesmo. Esta é a minha bússola, os meus limites. Tudo que faço de tão diferente, jamais deixo violar essa Lei maior. Então, fazendo assim, não sigo os meus desejos e sim a vontade de Deus. a não ser que me seja indicada qual ação que eu promovo e que fere a Lei do Amor.
A segunda crítica é que faço mal às mulheres com quem me envolvo à nível sexual. Esta também é uma preocupação que eu tenho, então procuro ser muito cuidadoso nesses relacionamentos. Primeiro, jamais deixo que o sentimento de amor por mim seja aprofundado sem a pessoa saber quem sou, como penso, como sinto, como ajo. Quando essa verdade é conhecida e mesmo assim a mulher deseja o aprofundamento dos afetos, eu não a repudiarei se ela evoca também em meu coração sentimentos afetivos. Então caminhamos de mãos dadas, cada um sabendo que não existe a posse ou exclusividade de nossos afetos. Se isso causa dor quando ela sabe que também estou dando afeto a outra pessoa, isso já era previsto, essa dor já era esperada. Também não vejo nesse caso que esteja causando mal as minhas companheiras, pelo contrário, quando estamos juntos somos seres felizes que experimentamos o acelerar do relógio. E ficamos sempre vigilantes, apesar de tudo, para quando a dor e o sofrimento superar o prazer e a felicidade da relação, que sejamos fortes e coerentes para evitar o aprofundamento sexual e permanecer sempre com a amizade fraterna que teve uma base no amor profundo já experimentado.
A tolerância é um atributo consciencial importante no processo da evolução. Tenho consciência de que estou no mundo cercado de seres vivos e muitos deles com a capacidade cognitiva que eu possuo, alguns para mais, outros para menos. Todos estamos envolvidos no processo evolutivo onde a procura da verdade é o foco de todos. Porém o caminho que cada um escolhe em função das contingências da vida, nunca vai ser igual ao do outro. A verdade é percebida dentro de suas variadas nuances e muitas vezes fazemos interpretações equivocadas do mundo. Como dentro da ignorância eu não sei se estou caminhando num erro pensando que é o certo, da mesma forma irei encontrar outras pessoas com esse mesmo perfil. Devido a necessidade da formação de relacionamentos, essas características diversas de aprendizado logo vão entrar em conflito, principalmente quando dois que antes comungavam com as ideias, de repente encontra determinado posicionamento que não parece correto enquanto o outro pensa que sim. E isso é muito comum!
É nesse ponto que a tolerância mostra sua importância. Aprendi que devo tolerar o comportamento do outro que pensa estar certo e fica sempre em busca de ensinar a verdade que procurou e acredita que achou. Pois também eu tenho minhas verdades e não estou disposto a trocar pelo pensamento do outro que imagina estar certo. É assim que a tolerância previne o rompimento das relações e mantém a amizade nos diversos tipos de relacionamento.
Também sei que sou alvo da caridade de muitos, pois exercem a tolerância comigo, pois sei que também tenho esse comportamento de considerar algum aspecto da vida como verdadeiro e lutar com todo meu potencial intelectual para confirma junto ao outro essa pretensa verdade.