O tempo é o administrador da vida, o que ontem era flores, hoje pode ser espinhos... e vice-versa.
Ontem eu estava festejando este dia com muita felicidade, meu peito inundado de paixão encantava a minha amada com fogos de artifícios emocionais, meus beijos, bandeirantes do prazer, seguia a coreografia dos abraços numa viagem mágica pelos caminhos do coração.
Hoje, depois de meses sem fitar os seus olhos, ela estava à minha frente. Dentro da sala de audiência da justiça, na providência do divórcio, para separar por direito o que de fato ela rompeu. Não digo que foi sem motivos, pois a qualidade do meu amor, e principalmente, os cuidados de pai, não foram suficientes para ela, e pior, foram inaceitáveis!
Mas, por que estranho feitiço do destino isso teria que acontecer justamente neste dia? Dia dos namorados? Logo que ela chegou reconheci sua silhueta ao longe, meu coração como sentinela foi quem logo advertiu com um baticum mais rápido e forte. Estava diferente, não era aquela moça, mais menina que mulher, que me encantara pela primeira vez; que fez ninhos em meus sonhos e promessas de utopia romântica... eu ria dos meus sonhos pecaminosos, quase pedófilos... mas fui castigado! Da mesma forma que Sara riu da impossibilidade quando os anjos disseram que ela iria ser mãe com idade avançada, eu também ri daquele idílio impossível de acontecer com aquela criança. Pois ela chegou na minha frente transformada em mulher e a paixão foi inevitável. Nem o calor das piscinas térmicas, nem o sol causticante das praias de areias brancas, conseguiam derreter tais emoções; nem a distância que separava nossos olhos conseguia separar nossos corações; nem os preconceitos, críticas e compromissos alhures conseguiam frear a atração de nossos corações um para o outro.
Foi a vez dos anjos rirem quando eu passei a morar com ela e a utopia se tornar realidade. Foi a vez dos anjos cobrarem uma multa pela descrença, pela ironia, como fez com Sara que deu o nome de “Isaac” ao seu filho, que significa riso. Comigo a multa foi mais severa. A minha utopia estava condenada a “destruição”, pois o meu coração não era compatível com o coração da minha amada.
Deus, como sofri para manter a utopia! Tentei amordaçar o meu coração, mas vi que me tornava um robô, o coração tem que ser livre para colorir a vida; tentei viver apenas como amigo, abrindo mão das delícias da intimidade que ela podia me proporcionar, queria pelo menos ter o seu contato físico, ouvir sua voz ao meu lado nas coisas mais corriqueiras, um simples sorriso para mim era uma grande recompensa. Mas nem isso os anjos permitiram!
Chegou o momento fatídico da minha expulsão. Assim como Sara exigiu a expulsão de Ismael e sua mãe devido o nascimento de Isaac, a minha amada exigiu a minha expulsão devido também o nascimento de uma criança e minha relação com sua mãe. Ismael e sua mãe foram para o deserto, apenas com um bornal com mantimentos; eu também fui para o deserto, apenas com minha roupa e livros.
Agora eu estava ali, frente a frente com ela. Lembrava que a ida de Ismael para o deserto deu origem aos muçulmanos e ao profeta Maomé; Isaac deu origem aos cristãos e ao profeta Jesus. Até hoje se digladiam com um ódio que não conseguem eliminar. Será isso mais um planejamento de vingança dos anjos por uma simples ironia? Será isso que eles querem ver também entre eu e minha amada?
Mas não permitirei isso. Eles podem ter uma vitória sim, ao nos separar, pois não depende só de mim. Mas não conseguirão nos ver digladiando com ódio, pois eu não permitirei. O meu amor por ela jamais deixará de existir no meu coração. Eles podem ter roubado a paixão que nos incendiou na juventude e fez acontecer a utopia que achávamos impossível, mas não conseguirão desalojar o amor que eu tenho. Somente Deus conseguiria fazer isso, mas o amor que eu tenho faz parte da Sua essência. Podem me bombardear com críticas, acusações, multas, penalidades... jamais deixarei entrar ódio no meu coração por aquela que aprendi a amar, o amor da mais alta qualidade e profundidade que eu já experimentei... se isso satisfaz a sanha de vingança desses anjos tão mesquinhos, sim, eu direi para eles: vocês não conseguem implantar o ódio no meu coração, mas ele já está impregnado de saudade, doída, angustiosa, como uma marca do amor que fica quando o ser amado se esfumaça nos distantes túneis do tempo.
Olho para ela naquela sala, ladeada pelo juiz, advogados, estudantes de direito, e a vejo explodir em lágrimas, lamentações, reclamações, desamparo, medo... Meu Deus, que fiz com aquela criança?!! Meus olhos também denunciam a amargura em meu coração... sinto o calor das lagrimas deslizarem pelo meu rosto impassível. Meu Deus, quanto sofrimento! E pior de tudo, tenho que ser honesto. Se o Pai permitisse que eu voltasse no tempo, sabendo a consequência de ironizar os anjos, eu voltaria a rir deles, pois sabia que iria saborear um amor sublime que jamais encontrei, nem que fosse por um minuto sequer.
Parece que quando o dedo de Deus aponta para alguma pessoa, acarreta muitas dificuldades em sua vida material. Quando o pai de Saulo estava procurando uma mulher para casar com ele, foi falar com um velho rabino que tinha uma neta, Elisheba, que atendia seus objetivos. Acontece que o avô gostava muito da neta, não pensava que ela fosse sair tão cedo da sua companhia, e queria encontrar um pretexto para recusar o noivo, através do pedido do seu pai, que assim argumentava:
“Minha família não é desconhecida, tem um nome respeitável em Israel e a mãe de Débora, avó de Saulo, é de uma família ilustre. Vejamos agora meu filho. Você mesmo disse que ele tem um grande intelecto e uma mente poderosa, tendo mesmo acentuado que o Dedo de Deus tocara nele...
“- Ah! Gritou o velho alegre por ter descoberto uma desculpa para rejeitar Saulo. – Não quero profetas inflexíveis na minha família, especialmente para Elisheba, que é uma flor! O Dedo de Deus! É sensato não apenas para os homens evitar a companhia de um homem que recebeu esse toque... porém é muito mais sensato para as mulheres! Não é bom ficar nas proximidades de um homem assim. Há relâmpagos perigosos. É ele alguém feito para minha alegre Elisheba, que é como uma ovelhinha ou rouxinol na primavera? Ele partiria seu coração.”
Fico a refletir nessas considerações que o pai e o avô dos jovens, Saulo e Elisheba, respectivamente, fazem a respeito deles, principalmente quanto a Saulo. Enquanto o pai pensava que por ter sido tocado pelo Dedo de Deus o seu filho se tornaria mais atraente para um casamento, foi justamente o contrário. O avô da jovem pegou justamente esse aspecto para descartar definitivamente a possibilidade dos dois namorarem e casarem na sequência.
Fiquei um tanto quanto identificado com as dificuldades de Saulo na visão do rabino. Também sinto que fui tocado pelo Dedo de Deus de alguma forma. Talvez não tanto intenso como aconteceu com Saulo, mas um toque de Deus em minha vida, sim! De repente adquiri uma firme convicção da existência de Deus e de uma missão que ele implantou em minha consciência. Tornei-me inflexível quando a isso, e terminei desviado significativamente das normas sociais. Não perco tempo em companhia de homens vulgares. Eles também não me procuram.
As mulheres têm ainda uma maior necessidade de afastamento de mim. O sentimento de amor exclusivo que elas sempre desenvolvem com os companheiros, é incompatível com o sentimento de amor inclusivo, uma consequência do Amor Incondicional, que o Pai colocou na minha consciência. Mesmo sabendo disso, e resolvendo ficar ao meu lado como companheira, qualquer mulher sempre tem momentos de coração partido, quando sabem que estou distante ao lado de outra.
Nesta missão determinada pelo Pai de construir relacionamentos compatíveis com o Seu Reino, a principal meta é formar um núcleo amplo de relacionamentos fraternos, inclusivos, que não exista o ciúme, o ódio, a intolerância ou qualquer forma de egoísmo. Para isso ser alcançado é necessário que o coração animal que bate dentro do nosso corpo humano, seja realmente partido e vencido definitivamente.
Achei Deus por um caminho diverso de Paulo (Saul). Assim ele se exprimia de forma dolorosa, citando as palavras de Jó:
“Oh, que eu possa saber onde encontrá-Lo, que eu possa chegar mesmo ao Seu escudo! Defenderia minha causa perante Ele e encheria minha boca de argumentos. Conheceria as palavras com que Ele me responderia e compreenderia as palavras que me diria. Olhe, avanço e Ele não está lá, recuo e não O percebo! Na mão esquerda, onde Ele trabalha, mas não posso notá-Lo. Ele se esconde na mão direita e eu não posso vê-Lo.”
Foi necessária intervenção do Pai (Hillel), para tentar confortá-lo terminando de citar o resto das palavras de Jó:
“Mas Ele sabe o caminho que tomei. Quando Ele me experimentar, virei a toma como ouro! – Pois Ele executa a coisa que designou para mim.”
Finaliza Hillel, dizendo assim:
“Iremos para casa. Não nos lembraremos de enigmas, fantasias ou quimeras na segurança do nosso lar, na paz dos nossos jardins. Você recobrará a saúde, atingirá a maturidade e então Deus lhe revelará Sua vontade, bendito seja Seu Nome.”
Mas Saul volta a dizer com voz trêmula:
“Queria conhecer a imensidade de Deus, e isso me tem sido negado.”
Então Hillel resolve lhe contar uma história que ouvira na infância e que permaneceu na sua memória por ser verdadeira:
“Três santos foram ao Templo orar, meditar e refletir, e eram religiosos e bons, com muitos conhecimentos e sabedoria. Ficaram em silêncio entre as sombras dos pilares grandiosos, junto ao Altar Central, olhando para a cortina que ocultava o Santíssimo, pensando na imensidão.
“Deixaram suas mentes vagarem pelos universos infinitos de que falam os gregos, pelas constelações e pelas galáxias, que se sucediam, mergulhando na eternidade e esta não tinha fim.
“Suas mentes humanas perseguiram o universo, as constelações e as galáxias nas profundezas do espaço e do tempo, continuaram vagando e não havia fim nem princípio. E suas mentes vacilaram a esse pensamento, sem poder compreendê-lo, entendê-lo ou abarcá-lo, pois certamente, diziam-lhes seus intelectos humanos e seu conhecimento da realidade, há um princípio, há uma fronteira além da qual nada existe – e ao pensamento do nada, ao pensamento do infinito e mesmo além dos abismos de outros infinitos, mais universos, mais constelações, mais nada, sem fronteiras, suas mentes sofreram um choque, eles encolheram-se e foram tomados pelo horrível terror frio do pensamento do infinito – pois que homem pode compreender?
“Então um dos homens levantou-se e apunhalou-se no coração, pois não pode suportar a ideia de infinito, que se torou um horror despropositado para ele. o segundo ficou louco, correndo desvairado para a rua. O terceiro... – Hillel hesitou. – O terceiro perdeu completamente a fé, voltou-se para os seus companheiros e disse: ‘Deus não existe.’
Saul levantou a cabeça e tornou a olhar o rosto do pai. Hillel sorriu triste.
- Eu lhe disse, as Escrituras lhe disseram, que homem nenhum pode compreender Deus nem Sua criação, pois o que Ele vê na vizinhança e num eterno meio-dia, só pode ser conjurado pelo homem em termos da realidade de tempo e espaço do nosso débil mundo, que é uma ilusão.
- Tornou a pegar a mão de Saul, prosseguindo: - Quem procurar Deus, certamente O encontrará... e saberá quando isso acontecer, pois é um dom que tanto pode matar, salvar ou enlouquecer! Certamente, é melhor apenas amar a Deus, deixando-O revelar-Se suavemente, como desejar, e não exigi-Lo. Pois só Moisés viu o Rosto de Deus e dessa visão, como foi dito, expirou.”
O caminho pelo qual encontrei Deus também foi muito diferente do caminho de Paulo. Eu não O procurava, pelo contrário, criticava Sua existência e procurava destruí-lo com minha lógica, inteligência, coerência. Mas por mais que eu tentasse destruí-Lo, negá-Lo, mais Ele se firmava na minha consciência. Até que um dia, não podia mais continuar nessa procura intensa, pois já estaria assim fugindo da lógica, inteligência e coerência que eu tanto respeitava. Tive que aceitar a existência de Deus, do Pai, do Criador... uma energia criadora que tudo e a todos perpassa. Não cheguei a sofrer tanto quanto Paulo, quanto a essa interpretação de um Deus rigoroso e punitivo, que tudo ver e julga sem misericórdia. O Deus que eu encontrei foi aquele que Jesus ensinou, misericordioso, pronto a perdoar 70 x 7 e muito mais. Foi a esse Deus que eu submeti a minha vontade e agora procuro fazer a Sua vontade e não a minha.
Continuando a ler o livro de Taylor Caldwell, “O grande amigo de Deus”, a história de São Paulo (Editora Record, São Paulo/Rio de Janeiro, 2005 - 22ª edição, pp 234-238), deparei-me com o seguinte trecho que reproduzo abaixo, o diálogo de dois soldados romanos, pai e filho, falando de Roma da época de Jesus, que lembrou-me de imediato a situação do Brasil de hoje:
“Milo discutiu reservadamente com o pai as condições da Roma moderna e seu rosto tornou-se progressivamente sombrio à medida que se dirigiam sem parar para a Porta de Joppa.
- Já falamos nisso, pai – disse Milo -, e não chegamos a uma conclusão, a não ser que Roma, como é agora, não pode continuar, a menos que os bons cidadãos sejam cada vez mais oprimidos e finalmente escravizados a serviço dos inferiores. Sabemos que as crianças recém-nascidas não podem mais ser sustentadas pelos pais, antigamente chamados de ‘homens novos’, a classe média, e estão sendo expostos de maneira a que devam morrer. A cada dia que passa, mais impostos onerosos são descarregados nas costas dos homens laboriosos, respeitosos e produtores, para o realce de uma corte dissipadora, financiamento de fazendeiros, cobiça dos políticos, abrigos gratuitos construídos para a ralé preguiçosa, indolente, estúpida e degenerada, divertimento livre para esse mesmo populacho, construção de enormes edifícios governamentais para abrigar o sempre crescente e cobiçado exército de burocratas e outros funcionários insignificantes, celeiros que fornecem comida gratuita à malta, e os sonhos ambiciosos dos filhos de escravos libertos de transformar as ruas, becos, estradas, casas, vilas e os subúrbios de Roma numa grandiosa ‘cidade de alabastro’! Então, há as guerras para alimentar as oficinas que fabricam armamentos e cobertores para os mercenários, que esgotam a bolsa pública, agora quase vazia. Tibério César começou com um propósito nobre: restaurar o Tesouro, pagar a dívida pública, encorajar a frugalidade e punir o ócio. Mas ele também sucumbiu às pressões estabelecidas por Júlio César, que pagava a ralé para apoiá-lo.
- Nenhuma nação – disse Aulo, que havia estudado história – toma esse caminho sem sucumbir. Assim, Roma deve sucumbir.
Seu rosto contorceu-se de dor.
- Durante nossa vida – falou Milo – devemos viver virtuosamente e com vigor, desprezando os fracos e depravados, detestando os concupiscentes, exaltando nossos deuses, pagando nossas dívidas. – Sorriu. – E nossos impostos... quando seus sanguinários cobradores nos pegam.
- Se todos os bons cidadãos romanos recusarem-se a pagar os impostos, que pode então um governo tirânico fazer? – perguntou Aulo, com um olhar ansioso ao filho, mistura de humor e malícia.
Milo riu, contendo seu enorme cavalo negro para evitar atropelar um garoto imprudente. Depois, ficou sério.
- Pensa que a populaça lúbrica, os ricaços, decadentes, abandonados, preguiçosos, vis, não lutariam por seu sustento, vindo das bolsas dos orgulhosos? Garanto-lhe que César viraria a ralé contra os bons romanos, deixando-a saquear, queimar, destruir e matar à vontade, até Roma ser transformada num rio de sangue e os cidadãos úteis reduzidos à mendicância e escravidão. Lembre-se de que Catilina tentou isso, mas teve que enfrentar Cícero, que se opôs a ele e finalmente derrotou-o. Mas agora não temos um Cícero, nenhuma forte voz patriótica, infelizmente, e restam poucos romanos para lutar pela pátria, pelo respeito aos deuses, pelas cinzas dos pais e pelo orgulho heroico.
- O desespero – disse Aulo – não é um mal. É uma virtude e pode inspirar homens a restaurar a grandeza de sua nação, sua virtude, esforço e orgulho. Mas os vis eliminaram o desespero dos corações dos homens, deixando apenas vermes e Circes sedutoras, que dizem ser tudo em vão, que é suficiente enfrentar o dia e sobreviver, deixando que o amanhã se arranje. Assim, os homens que devem vigiar as muralhas e guardar as portas, olham as mulheres e filhos, encolhem desencorajados os ombros e não se desesperam. O desespero os abandonou há muito, quando os mentirosos disseram-lhes que era inútil opor-se ao governo tirânico que declarava amar a ralé e instilara nela a inveja, a cobiça, a luxúria, e a informara de que os que trabalhavam pelo pão eram seus ‘inimigos naturais’, que deviam ser arrasados pelos impostos. Se eu ousasse – prosseguiu Aulo -, ergueria um templo para a deusa do Desespero, vestindo-a com uma armadura flamejante, dando-lhe uma reluzente espada vingadora, e implorava-lhe que destruísse as criaturas corrompidas que estão comendo meu país vivo, devorando suas entranhas e bebendo seu sangue dourado!
- Como diria minha mãe, ‘Amém’ – falou Tito Milo Platônio. – Os judeus não dizem, ‘o que não trabalha não deve comer’? Amém. Amém. Roma já foi aconselhada, mas não é mais. Todavia, como disse Cícero, cada povo tem o governo e o destino que merece. É verdade.
Tinham chegado a um cruzamento. Milo e o pai sofrearam seus cavalos, fazendo com que sua comitiva também parasse. Uma multidão barulhenta e brutal estava reunida, erguendo porretes e assentando-os furiosamente nas cabeças e corpos de meia dúzia de homens no meio, praguejando e insultando-os. Os homens haviam caído de joelhos, protegendo as cabeças com os braços e implorando misericórdia. À sua volta havia livros, papéis e canetas espalhados; a ralé pisoteava-os, espalhava-os e cuspia neles.
Milo ergueu a mão encouraçada e um soldado aproximou-se a cavalo.
- Pergunte, se possível, o que está causando esse distúrbio inconveniente – disse.
Aulo franziu o cenho.
- É meu dever, como centurião, manter a ordem.
- É verdade – retrucou Milo e tornou a esboçar um sorriso. – Mas acho que, neste assunto, o senhor preferirá virar os olhos para o outro lado.
O soldado voltou, fazendo continência.
- Senhor – disse -, os homens estão espancando os coletores de impostos e, ao que parece, não querem apenas seu sangue, mas suas vidas.
Aulo preparou-se para avançar, porém Milo segurou o pescoço do cavalo do pai. Ergueu os olhos serenamente para o imenso céu azul.
- Este é um dia agradável e estou usufruindo a primeira parte da minha viagem – falou. – Vamos entrar por esta rua, que está muito tranquila.
Virou o cavalo rapidamente para aquele lado.
Aulo olhou-o, aturdido, e franziu ainda mais o cenho.
- Os coletores de impostos são nossos empregados. Estão cumprindo seu dever.
- E com satisfação – disse Milo. – Oprimem seu próprio povo, porque são uns tipinhos mesquinhos e malvados que sentem prazer à visão da dor e da aflição. Portanto, deixemos que provem o que fazem com os outros. Em proporção menor, é nossa única vingança contra os coletores de impostos de Roma, e desejemos que os romanos tenham o espírito desses pobres e maltratados judeus! Por uma vez, deixemos a deusa Justiça se satisfazer.
Aulo sorriu interiormente e a comitiva entrou na rua tranquila, afastando-se dos gritos e do tumulto, até não mais ouvirem nada.
Fui negligente, pensou Aulo. Meu dever era claro. Mas não é uma coisa horrível quando o dever de alguém é a tirania, a proteção de seres abomináveis e o castigo dos que tinham razão no seu desespero e ira? Quando deve a manutenção da lei e da ordem descer à fossa da opressão?
As suas costas, ouviu as risadas dos soldados de Milo e esperou que estivessem rindo com pensamentos semelhantes aos que estavam atravessando sua mente.
Vinte e cinco cobradores de impostos judeus haviam sido atacados naquele dia nas ruas de Jerusalém por gente desesperada e dez morreram dos ferimentos. Depois disso, durante um certo tempo, os coletores de impostos, apesar de protegidos pelos romanos, andaram com cuidado, sem roubar, extorquir, torturar, se apropriar de coisas nem convocar os guardas para efetuarem prisões. Sabiam do ódio que sua própria gente lhes dedicava e do desejo de vingança em seu íntimo, fazendo com que nada os provocasse durante algum tempo, agindo circunspectamente. Os romanos nem sempre estavam presentes.
Isso foi em parte devido a intervenção de Aulo Platônio, que publicou uma ordem determinando que qualquer coletor de impostos apanhado num ato desonesto fosse executado. O coletor devia agir clara e escrupulosamente, sem ameaças e sugestões de castigo, não devia mais extorquir, nem tirar o pão da boca de crianças ou o teto de alguém. Caso contrário, morreria publicamente, como exemplo para outros criminosos.
Uma ‘prisão e detenção’ de caráter geral fora determinada por Aulo contra os desesperados que tinham mutilado e morto os coletores de impostos, mas por qualquer motivo inexplicável nenhum jamais foi preso.
- Afinal de contas – disse Aulo de modo virtuoso aos seus colegas de farda -, na verdade não é da nossa conta. Empregamos os coletores, isso é verdade. Mas se são criminosos, que o seu próprio povo lhes faça sua rude justiça. Não dissemos a todas as nações que tínhamos trazido a Paz Romana? Acima de tudo, desejamos a paz.
Com menos ironia, porém com virtude ainda maior, o saduceu Shebua ben Abraão disse:
- É monstruoso que agentes e funcionários do governo não possam executar suas tarefas e deveres sem serem ameaçados por gente rebelde, que não respeita a lei e a ordem.
Mas então, Shebua, graças à sua amizade com Herodes e Pôncio Pilatos, pagava poucos impostos e a maior parte dos seus lucros era reservadamente depositada em Roma e Atenas, aos cuidados dos banqueiros mais discretos, que fingiam não conhecer os nomes verdadeiros de seus clientes. Os amigos de César não sofriam privações nem passavam necessidades, orgulhando-se da sua segurança e devoção à lei, ninguém ameaçava seus lares, tomava suas propriedades, inflamava seus corações velhacos com o ódio, nem diminuía suas fortunas. Também não olhavam os conquistadores do seu povo com raiva e ira, pois não tinham orgulho e o amor a Deus e à pátria não mais existia neles ou nunca tinha existido.”
Não poderia essa fala da autora, reproduzindo o que se passava na Roma antiga ser mais parecido com o que acontece no Brasil atual. A tirania exercida com a máscara da democracia usando a lei como forma de escravidão na forma de impostos, obrigando o cidadão trabalhar exageradamente para manter o sistema perverso e ganancioso em funcionamento com tendências expansionistas. Os cidadãos com perda da capacidade de se desesperarem, se deixam consumirem suas energias em fogo brando, e a terrível frase de Cícero termina por carimbar nossa fronte servil: “Cada povo tem o governo que merece”!
Escreveu Marcos no seu evangelho (1, 14-20) que depois que João foi preso, Jesus dirigiu-se para a Galiléia. Pregava o Evangelho (Boa Nova) de Deus, e dizia: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo; fazei penitência e crede no Evangelho”.
Já são passados quase 2000 anos dessa pregação de Jesus e o Reino de Deus que Ele anunciava como próximo ainda não foi realizado. Ele disse, se Marcos não se enganou, que o tempo havia sido completado, que era preciso fazer penitência e crer no Evangelho. Isso implica numa conversão, dos prazeres efêmeros do mundo material aos valores eternos do Reino de Deus. Mostrava que era urgente anunciar a Boa Nova e convocar os discípulos.
A conversão é uma condição necessária para participar do Reino de Deus. E, para pregar a conversão, precisamos primeiro estar convertidos. Fazer como os apóstolos que tudo deixaram para segui-lo. Essa é a parte mais difícil. O próprio Jesus deve ter percebido essa dificuldade. Apesar deles terem seguido o Mestre, impressionados com sua força moral, inteligência e milagres, eram confusos, covardes, interesseiros, e não chegaram a compreender o Reino de Deus que Jesus sempre ensinava. Chegaram a acompanhar o Mestre com fidelidade, até mesmo amor, mas nunca com a consciência sintonizada no que o Mestre ensinava. E Ele era o Mestre! Talvez por isso até hoje o Reino que devia ser construído não se concretizou. Até hoje, os novos apóstolos, como ontem, não conseguem aplicar na prática o Amor Incondicional nos relacionamentos, tirar a prioridade do amor romântico na construção das famílias nucleares, para construir as famílias ampliadas, universais... Não, os novos apóstolos, como os de ontem, apenas se voltam para mitigar o sofrimento dos pecadores, de curar suas doenças, de ensinar o Evangelho dessa forma, sem atacar o egoísmo que está entrincheirado dentro das famílias nucleares, com a perpetuação do egoísmo que se mascara na forma de fraternidade evangélica, que sobe aos púlpitos das Igrejas ou cátedras das academias.
Jesus também não podia ensinar tudo. Ele tinha que ensinar primeiro as primeiras coisas. Ele não podia construir relacionamentos afetivos com base no amor incondicional, que pudesse incluir a todas e todos sem preconceitos dentro da construção da família universal. Ele devia fazer, como fez, primeiro ensinar o que era o Amor Incondicional e confrontá-lo com o amor condicionado aos interesses egoístas do mundo material. Mas agora temos que aplicar o amor que Ele ensinou nos diversos tipos de relacionamento, principalmente os relacionamentos íntimos que constroem as famílias através da força reprodutiva. Se conseguirmos sucesso nessa empreitada, colocando a força do instinto sexual a serviço do Amor Incondicional e não do amor romântico, construiremos uma sociedade que não necessitará da caridade pública, pois todos viverão harmonicamente como irmãos, com justiça, solidariedade e abnegação.
O pré-requisito para essa conversão acontecer e a prática do Amor Incondicional ser aplicada é a fé nas lições que o Cristo ensinou e no Reino que Ele anunciou, pois ninguém irá sacrificar seus ídolos mundanos e vícios prazerosos se não estiver convencido de que os valores do Reino estão acima de qualquer bem deste mundo.
Acredito que eu tenha atingido esse nível. Vejo que é importante a evangelização das pessoas, principalmente aquelas que ainda não conhecem Jesus, mas considero ainda mais importante aplicar o Amor Incondicional nos relacionamentos, mesmo que assim fazendo eu detone o meu potencial de crescimento material, que não consiga acumular recursos financeiros para o meu prazer e da minha descendência biológica. Passo a considerar todos os bens materiais que recebo como uma dádiva dos bens de Deus que ele coloca à minha disposição, que devo utilizá-los de acordo com a sua vontade, pois pertencem a Ele e não a mim.
Assim, hoje me sinto convertido pelas lições e promessas do Cristo, pela lógica de Suas palavras e pelo Amor que sinto brotar de Seu coração. Hoje estou afastado dEle pelo tempo, mas me sinto muito mais próximo do Mestre do que os discípulos que caminharam com Ele, pois, sem falsa modéstia, acredito que tenho uma compreensão do Reino que Ele ensinou e anunciou com maior precisão.
Falta agora só a coragem e inteligência para implementar aquilo que sei!