Ao começar a leitura do livro “O Papa Bom – Testemunhos de quem viu, ouviu e viveu perto de João XXIII” de Renzo Allegri (jornalista, escritor e crítico musical. É autor de mais de 40 livros, muitos dos quais sobre a vida de santos e eventos relacionados ao mundo religioso, como Tereza dos Pobres e os Milagres de Fátima), percebi que esse Papa também fazia um registro parecido com este que faço diariamente. João XXIII fazia o “Diário da Alma”, e segundo o atual Papa, Francisco, ali podemos ver o seminarista, o sacerdote, o Bispo Roncalli (no mundo secular era seu nome, Ângelo Giuseppe Roncalli) lidando com o caminho da purificação gradual do coração. Ele estava sempre atento no dia a dia, para reconhecer e amortizar os desejos que provêm do próprio egoísmo, para discernir as inspirações do Senhor, deixando-se guiar pelos sábios diretores espirituais, e se inspirando em mestres como São Francisco de Sales e São Carlos Barromeu. Ao ler esse Diário, na verdade estamos assistindo a um espírito se formando sob a ação do Espírito Santo, que atua em sua igreja, nas almas: foi ele que, com essas boas propensões, pacificou o próprio espírito.
É este caminho que quero também percorrer e deixo registrado neste blog, neste diário na internet e que cada pessoa interessada pode ter acesso e divulgar, desde que coloque a fonte. Tenho a consciência de que sou um espírito bastante precário e que devo me esforçar para a purificação a cada dia. Tenho a consciência também, como professor que sou no mundo secular, que tenho o dever de ensinar o que aprendo no dia a dia, mostrar minhas deficiências desde que não atinja a harmonia e o respeito que devo ter com o próximo e as suas opiniões e modos de se comportar.
Nos ambientes que o Papa João XXIII foi chamado a atuar, ele demonstrou ser um eficiente articulador de relações e um capacitado promotor de unidade dentro e fora da comunidade eclesial, aberto ao diálogo com os cristãos de outras igrejas, com expoentes do mundo judaico e muçulmano, e com muitos outros homens de boa vontade. Ele transmitia paz porque tinha um espírito profundamente reconciliador. Ele tinha se deixado pacificar pelo Espírito Santo. E esse espírito reconciliador foi fruto de um longo e difícil trabalho sobre si mesmo, que pode ser visto no seu “Diário da Alma.”
Nos meus ambientes e relacionamentos eu fui chamado para ser testemunha do Amor Incondicional em todos os relacionamentos, principalmente os relacionamentos íntimos, que desconstrói a base romântica da família nuclear e caminha para a fraternidade da família universal. O enfrentamento que faço com o egoísmo é de natureza profunda, sinto que atingi uma transformação suficiente para ensinar na teoria e na prática os benefícios dessa nova atitude e sentimentos, mas os meus parceiros, principalmente as minhas companheiras, estão muito distante de mim. Não consigo ser o excelente articulador de relações que foi João XXIII, não consigo promover a harmonia nas três pessoas que se encontram mais próximas de mim na condição de companheiras.
Os relatos que faço no meu diário, como este de hoje, são repletos de falhas na harmonia, eu vejo mais raiva do que amor, vejo mais intolerância do que tolerância, vejo mais distanciamento do que proximidade, naquelas que estão mais próximas de mim e que deveriam ser o modelo da família ampliada. Esse choque de egoísmo me joga de forma explosiva à distância, moro sozinho devido a isso. Cada uma que chegue para morar comigo traz consigo o germe da intolerância, da exclusividade, que desarmoniza o ambiente e espanta o amor Incondicional. Não é que eu precise criar ou aperfeiçoar o Amor Incondicional que já desenvolvi em meu coração Acredito que o que tenho já é suficiente para dar as condições necessárias para a criação harmônica da família ampliada, pré-requisito para a família universal. O que falta em mim é o que sobrava em João XXIII, acredito. A capacidade de argumentar e articular esses relacionamentos e dar as condições de gerar um ambiente harmônico, dar uma unidade dentro da diversidade adequada à proximidade do Amor em todas as direções.
Participei em Campina Grande de uma caminhada pela Paz puxada pelo pessoal do Harekrishna; aqui em Natal, na última reunião da AMA-PM foi apresentada uma proposta de fazermos uma caminhada pela Paz na Rua do Motor. Muitos políticos e estadistas em tempo de crise organizam ruidosas conferências sobre o tema da Paz. Teólogos e chefes eclesiásticos de maneira semelhante promovem encontros pela Paz no âmbito de suas igrejas. Tudo isso na melhor das hipóteses só consegue atingir a periferia da questão. Falar de Paz ou em favor da Paz é uma ilusão, se aqueles que fazem isso são os promotores de discórdia, de intolerância, de guerras.
Os homens, pelo menos os melhores, sempre sonharam com a Paz, mas o mundo nunca se livrou da guerra. Somente aqui no Ocidente, Pitirin A. Sorokin, sociólogo russo, naturalizado americano, assinalou 967 guerras travadas entre os anos 500 aC a 1952 da nossa era. Em média uma guerra a cada dois anos e meio de história. Há razões para supormos que atualmente o mundo tenha mudado? Nenhuma! Países africanos, Coréia, Índia, Vietnã, Sérvia, Croácia, Paquistão, Afeganistão, Estados Unidos, Inglaterra, Argentina, Israel, Líbano, Palestina, Iraque – são exemplos que nos mostram exatamente o contrário. Tudo isso sem entrar no famigerado problema do terrorismo, que assolou nosso país e cuja militante uma mulher que hoje se encontra no poder e tudo mostra que fomenta o ódio na população. Tem como acreditarmos nos homens que falam sobre a Paz e mantém o mundo como está? Nosso mundo jamais conheceu a Paz, pois o máximo que conseguimos é um armistício, um breve intervalo de pseudoPaz entre duas ou mais guerras. Qual a causa de tudo isso?
A Paz só é possível se cada homem conseguir pacificar a si mesmo. A Paz não é uma causa, é uma consequência. Enquanto não houver Paz dentro do homem, a serenidade imperturbável da alma, será impossível eliminar qualquer espécie de conflito, seja na família, na escola, na empresa, na igreja, nas nações. Um homem de Paz, um homem de verdadeira Paz, a exemplo de Jesus ou de Mahatma Gandhi, vale mais para a pacificação do homem e do mundo do que todos os demagogos e autoiludidos juntos, sejam eles políticos ou teólogos.
“Deixo-vos a Paz, dou-vos a minha Paz; não vo-la dou como a dá o mundo”. (Jo 14,27) Jesus nos disse isso, sabendo que poucas horas depois iria morrer e de morte horrível, morte na cruz. Mas porque o Cristo em Jesus não nos dá a Paz do mundo? Justamente, porque o mundo nada sabe de Paz. O mundo ainda jaz no maligno, na ignorância, e o seu príncipe é o poder das trevas. Por isso, a linguagem do mundo é a astúcia, é a força, á a violência, é a guerra. Jesus não nos dá a paz do mundo, Ele nos dá a Paz do Cristo, mas somente para quem já desenvolveu a consciência da Paternidade Única de Deus, pois a ninguém é dado entrar indevidamente, de contrabando, no reino da Verdade Libertadora, no reino dos Céus, no reino do Cristo Interno.
Gandhi também foi um homem de Paz e pacificador. Ele dizia que “O Amor plenificado de um único homem neutraliza o ódio de muitos milhões.” O grande sábio sabe o que diz, porque o Amor é presença, enquanto o ódio é ausência. A vida do Mahatma, enquanto esteve entre nós, foi toda ela uma confirmação prática dessa verdade. Gandhi provou, não somente com palavras, mas, sobretudo com sua própria vida, que o Amor é realmente presença, presença de Deus no mundo, ao passo que o ódio não passa de ausência, ausência de Amor no homem. Uma migalha de verdadeira presença pode calcinar um vasto oceano de ausência. Esse amor-presença é um Amor tríplice, que envolve o Amor Incondicional a Deus, o amor ao próximo sem esperar nenhuma recompensa, e o Amor desinteressado à Natureza.
A verdadeira Paz só pode nascer de um coração puro, limpo e crístico. A Paz somente pode ter origem na mansuetude de quem já conscientizou a Paternidade Única de Deus. Exatamente por isso sabe por experiência própria, com aquele saber que nada nem ninguém podem lhe tirar. Nem mesmo a morte pode tirar essa consciência de que somos verdadeiramente irmãos na fraternidade universal.
Esta é a única possibilidade para que o mundo inteiro se uma, entrelaçando-se na globalização do Amor, da Paz e da Esperança. Sei que é difícil isso acontecer, pois temos que vencer nossa resistência animalesca instintiva que automaticamente eclode em nossas consciências em por motivos tão fúteis. Lembro que da última vez que vinha de Caicó para Natal, sentaram-se nas cadeiras perto de mim um grupo de estudantes ruidosos e brincalhões. Aquilo atrapalhou a concentração que eu tinha na leitura que fazia e senti subir na minha consciência uma raiva com vontade de repreendê-los com autoridade. Mas logo em seguida surgiu também na consciência o reflexo dessas lições e considerei a questão de qual seria o meu comportamento com esse grupo ruidoso e brincalhão se fosse composto de meus filhos ou irmãos biológicos? Logo a emoção instintiva atenuou, pois se fosse assim, a minha postura cognitiva seria de alegria e harmonização por eles estarem perto de mim. Então, aquele grupo de pessoas desconhecidas também não filhos do mesmo meu Pai? Por que não os considero como irmãos como eu consideraria se fossem meus irmãos biológicos. De imediato a raiva se dissipou e suas piadas não mais afetaram a minha concentração na leitura. É um exemplo simples, eu sei, mas é uma boa amostra do que acontece com nossas emoções de forma automática e que devemos estar sempre atentos para desarmar a bomba da raiva e do ódio que gera conflitos e guerras e leva para longe a possibilidade de Paz.
Os grandes mestres estão corretos, a Paz deve começar dentro de mim até o ponto de ficar puro o suficiente para fomentar a harmonia da Paz ao meu redor e saber que o Cristo se refere a mim quando ensina: Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus.”
Ao assistir o filme “Santo Agostinho – o declínio do império romano” observei que ele é centrado na Verdade. Durante a formação de Agostinho como advogado ele aprendeu a valorizar as palavras como ferramenta de mudança de opinião do outro, mesmo que isso envolvesse a mentira, fosse contra os fatos e ajudasse a quem melhor pudesse pagar, mesmo que isso envolvesse a mentira e a injustiça. Agostinho não tinha escrúpulos em aplicar essa máxima, das palavras mesmo mentirosas servirem como seu principal instrumento de trabalho. Ele percebia ao seu redor todas as consequências das mentiras que professava, na vida íntima e na vida pública, levando dores e distorções nos pensamentos das pessoas do seu convívio, da sua influência. Foi no seu primeiro encontro com Ambrósio, bispo de Mediolano (atual Milão), na corte do Imperador, quando ele insinuou a dificuldade na procura pela verdade, que Ambrósio lhe respondeu que não era preciso procurar a Verdade, pois a Verdade nos encontra.
Confesso que o meu pensamento era mais parecido com o pensamento de Agostinho, mas depois que refleti sobre a assertiva de Ambrósio, reconheço que ela tem maior coerência. A minha procura pela Verdade pode me levar por caminhos errôneos e que eu pense ser verdadeiros, mesmo que mais tarde eu venha reconhecer o erro e corrigi-lo, quando a Verdade me encontrar.
Fazendo agora uma reflexão sobre a minha trajetória de vida e as decisões que tive de tomar até o momento atual, observo que tudo se encaixa com mais perfeição. Lembro que a base do meu comportamento desde a adolescência, quando eu já começava a projetar meus planos para o futuro, era a justiça nos relacionamentos e a harmonia da convivência dentro do Amor. Quando eu observei que a Verdade me mostrava que havia justiça e mais Amor nos relacionamentos, mesmo conjugais, desde que fosse aplicada a justiça no comportamento do casal e nos novos pares que se formassem. Fiz justamente isso que a Verdade me trouxe: mudei os meus paradigmas de vida, trocando o amor condicional pelo incondicional, a família nuclear pela ampliada e me empenhei mais na construção do Reino de Deus como Jesus ensinou, Ele que dizia ser o Caminho, a Verdade e a Vida.
Em 430 Agostinho faleceu em Hipona, cidade na província romana na África, onde ele se dedicou enquanto Bispo e que tentou salvar da destruição pelos vândalos, só não conseguindo devido a presunção orgulhosa do governador, que acreditava que o poder militar de Roma não poderia ser derrotado por povos ignorantes. Os vândalos incendiaram a cidade e destruíram tudo, menos a catedral e a biblioteca de Agostinho.
Durante o cerco e o doloroso processo da invasão e destruição da cidade murada, as palavras de Agostinho ecoavam: “O Amor na adversidade tudo suporta. Na prosperidade se modera. No sofrimento é forte. É alegre nas boas obras. Na tentação é seguro. Na hospitalidade, generoso. Agradável entre verdadeiros irmãos. Entre os falsos, paciente. Este é o Espírito dos Livros Sagrados. É a virtude da profecia. É a salvação dos mistérios. É a força do conhecimento. É o fruto da fé. É a riqueza dos pobres. É a vida de quem morre. O Amor é tudo.”
Muito parecido com o texto de Paulo sobre o Amor. Muito parecido com a minha vida por querer viver o Amor de forma integral, ampla e irrestrita.
Procuro desenvolver a sabedoria de desapegar-me dos bens materiais e das circunstâncias da vida, ser um pobre pelo Espírito e possuir o Reino de Deus dentro do meu coração. Sei que devo ir mais além, desapegando-me não somente dos prazeres dos sentidos, como também das loucas emoções do coração e dos famigerados orgulhos da mente, para que somente assim eu consiga purificar meu coração, possuir o Reino dos Céus e sentir Deus dentro de mim, ser uno com o Pai. Assim atingirei a sexta bem-aventurança que Jesus ensinou: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus (Mt 5,8)”.
Esse “ver a Deus” não consiste em nenhum tipo de visão física, seja por meio de minhas grosseiras retinas de ordem material, seja por uma espécie de retina energética ou astral, após a morte biológica. Deus não pode ser “visto” assim desse modo, porque Ele é Absoluto, Infinito, Eterno e necessariamente Ilimitado. Ver a Deus significa percebê-lo espiritualmente, vislumbrar sua Essência, Conhecê-lo em seus desígnios e propósitos acerca do mundo, da humanidade e, sobretudo, a respeito de mim mesmo. Ver a Deus é viver em sua Presença, acima de toda ilusória noção mental ou intelectiva de tempo e espaço. É mergulhar consciente e subjetivamente na Eternidade e no Infinito.
Para que eu possa ver a Deus, é preciso que eu seja puro, seja limpo, tanto no corpo como na alma, o que realmente não é fácil, muito menos nessa dimensão telúrica pesada, obscura e de baixíssima vibração na qual me encontro. Desapegar-me dos bens da matéria, possuindo-os ou não, para mim já não é fácil. Tenho como exemplo o acúmulo de livros e DVDs que tenho abarrotados em meu apartamento. O desapego do próprio ego, então, é muito mais difícil. Este abandono da megalomania pirotécnica do meu ego fogueteiro, anticósmica mania que ele tem de idolatrar-se e fazer propaganda barulhenta de si mesmo, parece até impossível corrigir. Mesmo que eu me sinta confortável quando me comparo com outras pessoas, pois sei que elas me veem como uma pessoa humilde nesse aspecto, eu sei que ainda falta muito para que eu atinja o estágio de pureza.
Como me considerar “servo inútil”, conforme ensina Jesus, principalmente quando o ego, de fato, cumpre todas as suas obrigações virtuosas para aparecer bem para os outros? Como enfrentar esse terrível egocídio que é necessário? Como, então, posso morrer voluntariamente antes de morrer compulsoriamente?
Estas e outras objeções do ego, à primeira vista, são bastante lógicas e razoáveis. Porém, todos os homens crísticos e autoiluminados, aptos a ver a Deus, de todos os tempos e lugares, demonstraram sempre, não somente com seus ensinamentos, mas, acima de tudo, com suas próprias vidas, a inconsistência de qualquer desculpa egoica. Segundo tais gigantes do Espírito, o ego que não se integra no Eu, que não encontra seu caminho para Deus, não ultrapassou ainda seu estágio incipiente (elementar) e insipiente (ignorante) de evolução espiritual. Esta é a razão porque continua sendo um ego psicologicamente frouxo, moloide, lesmoide, ou moluscoide. É obvio que um ego moloide não pode ver a Deus!...
Se eu conseguir a necessária coragem e desenvolver uma sabedoria que me permita trilhar o “caminho estreito” do desapego total e, desse modo, passar pela “porta apertada” da renúncia completa, verei com muita surpresa, que o ego, em verdade não morre. Algo em mim irá morrer, morre sim, pois não existe parto espiritual sem dor, todavia, não é o ego que morre, é o egoísmo, isto é, a própria impureza.
Sei que devo reconhecer meus pecados perante o Senhor, isso é até fácil. Devo me comprometer em não repeti-los, e aí se encontra o problema. Não encontro forças até o momento para evitar cometer os erros que sei que cometo. Tenho como termômetro dessa dificuldade o desejo da alimentação. Sei que é errado comer exagerado e que prejudico meu corpo, o templo de Deus. No entanto não consigo parar o desejo que se instala na minha mente a serviço do ego indisciplinado. Termino com sobrepeso e até com níveis de obesidade. Este é um dos exemplos mais simples da dificuldade que tenho de cumprir, esse compromisso que tenho com o Pai, de administrar corretamente e proteger o corpo que Ele me deu.
Mesmo reconhecendo tão graves defeitos na minha conjuntura espiritual atual, o que me contenta é que sinto que estou caminhando em direção à luz, mesmo com todos esses percalços que identifico na rota. Sei que a minha meta é me tornar tão iluminado e puro, que a própria beleza de Deus possa brilhar em mim, mesmo que isso leve séculos e séculos de aprendizado nas diversas vivências pelas múltiplas moradas do Pai... Terei paciência e persistência!
Esta é a quinta lição que Jesus ensinou no Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia (Mt 5,7).”
Que é um homem misericordioso, então? É todo aquele que ama desinteressadamente os míseros, que são os sofredores, os deserdados do mundo, os humilhados e ofendidos, os enganados e roubados, os menos favorecidos, os nossos irmãos menores ou mais fracos; enfim, os retardatários na longa caminhada de retorno ao aconchego do Pai. Consola-os com paciência e alivia-lhes o sofrimento.
Quase sempre me esqueço de me incluir entre os míseros, pois preciso contemplar a mim mesmo com um profundo olhar de misericórdia, principalmente agora que está terminando o período dos 40 dias que decidi entrar no deserto psicológico para treinar o meu espírito no controle dos desejos da carne e sofri derrota em todos os itens de avaliação, até no mais simples deles que foi o controle alimentar. Por isso devo ser misericordioso não somente em relação àqueles que sofrem, mas também a mim mesmo. Sou como aquele que foi atacado por ladrões, saqueadores e ficou despojado da maravilhosa morada interior e agora perambula pelo mundo. O meu saqueador é o desejo da carne que rouba os frutos do meu espírito.
Um modelo de misericórdia que devo observar é o de Francisco de Assis, que praticou sua misericórdia sem esperar jamais qualquer retribuição ou recompensa, nem na terra nem nos céus. Seu fazer é naturalmente uma simples e pura consequência do seu ser. Quando o ser é bom, ele faz o bem em virtude de um transbordamento lógico, necessário e espontâneo, ele faz o bem por amor a própria bondade. Logo seu fazer não obedece a nenhuma condição, é simples doação, sem esperar qualquer gratidão por parte dos homens, nem mesmo um prêmio celeste por parte de Deus.
A própria graça divina que devo alcançar, segundo essa lição, deve ser incondicionada, deve ser graça que vem de graça, porque nenhum ser humano pode causá-la ou merecê-la, já que seria inconcebível eu reivindicar direitos em face de Deus. A graça vem, e vem necessariamente, pois conforme as leis cósmicas que regem o Universo, a misericórdia de Deus está sempre aberta e escancarada, à disposição de toda e qualquer criatura que se lhe torne idônea e receptiva, que lhe seja fiel, que já esteja afinada pela mesma frequência vibratória do infinito.
Para que tudo isso funcione no âmbito qualitativo da Metafísica, não basta que eu faça o bem, é necessário que eu seja bom, incondicionalmente bom, indefectivelmente bom, bom para com os bons e igualmente bom para com os maus. É preciso que eu seja capaz de amar os meus semelhantes pelo que eles são e não pelo que eles fazem, possam ou deixem de fazer. Qualquer criatura de Deus, dotada de livre arbítrio, é filha da Bondade Absoluta e tem a mesmíssima natureza do Pai, é uma luz divina no mundo, ainda que temporariamente escondida debaixo do velador ou do alqueire. Como estou longe ainda de atingir esse estágio, pois o que prevalece na minha mente é ainda o repúdio por alguém que se aproxima de mim nos semáforos pedindo uma ajuda, pois penso logo no uso de drogas, na ameaça que ela pode me causar... Não consigo ver o Deus que está escondido nela debaixo do velador!
Assim, se eu pratico qualquer espécie de mal ou de maldade, por ação ou omissão, é porque ignoro, pelo menos naquele momento, minha própria natureza e filiação divina; é porque mantenho uma visão separatista em relação ao Pai Celeste. Por isso mesmo a grande vítima do mal é sempre o malvado. Se eu não souber disso, ou sabendo deixar de praticar, então serei tão ignorante, hipócrita ou malvado quanto ele. Desse modo, o círculo da ignorância e da maldade tende a aumentar. Só existe uma forma de quebrar esta dura e aflitiva dicotomia de mal e de maldades. É a conscientização da Paternidade Única de Deus e a consequente fraternidade universal das criaturas.
Qualquer um pode fazer o bem, até mesmo pelos motivos mais egoístas e anticósmicos possíveis. Quando será que uma igreja, templo ou centro espírita, que corretamente condenam e abominam certos egoísmos terrestres, deixarão de incentivar e fazer a apologia de determinados egoísmos celestes, como a salvação da alma em troca de boas obras? Quando será que um partido político ao assumir o poder e fazer boas obras que é o seu dever, deixarão de corromper as instituições em busca de lucros financeiros indevidos e manutenção no poder pernicioso? Será que Deus deve pagar um preço ao homem pelo fato dele cumprir o seu dever? A tentativa de vender a alma a Deus não passa de um equívoco, um sentimento frágil e mercenário do ego.