Sióstio de Lapa
Pensamentos e Sentimentos
Meu Diário
25/10/2020 00h19
INSÔNIA

            Este é o sexto e último texto escrito no camping há 24 anos, após eu ter sido expulso de casa pela minha segunda ex-esposa...

            11-09-96 (09h02)

            Estou de volta à minha base. Após uma noite onde pela talvez primeira vez procurei o sono e não encontrei. Minha cabeça fervilhava procurando encontrar uma solução para sensibilizá-la, sem necessitar a minha transformação, a minha essência.

            Ia e vinha num turbilhão de imagens sempre acompanhado por aquela incomoda sensação de aperto no coração que de tão forte parecia estar se espalhando por todo o corpo.

            Às 03h30 saí dessa tortura quando fui chamado para ver um paciente portador do Mal de Alzheimer que estava com pressão baixa. Observei que ele estava definhando, em estado de caquexia. Ossos salientes, veias esvaziadas, escaras no corpo, secreção nos pulmões, um olhar perdido no vazio, sem responder aos estímulos que eu provocava. Percebi que sua vida estava se esvaindo lentamente. Afinal, há cerca de quatro anos ele vem se internando em diversos hospitais.

            Chamei a sua esposa, falei do seu estado de saúde, e ela me falava ainda com lágrimas nos olhos que aquele era mais um momento, talvez o culminante da perda. Isso porque ao longo de sua doença, foi perdendo um pouquinho dele à cada crise, a cada ameaça de morte. 

            Seu sofrimento era visível, mas mesmo assim correu em todos os hospitais clínicos para tentar lhe livrar de mais uma ameaça de morte.

            Fiquei a refletir e fazer comparações com o nosso caso. Talvez a minha doença seja emocional e ela faz também você sofrer a cada momento, e sentir que me perdia a cada crise mais forte. Mas naquela mulher eu via a luta contra todas as chances de manter por mais um pouco perto dela aquele pedaço de carne, sem alma, sem reações inteligíveis.

            O que era aquilo? Gratidão? Solidariedade? Compreensão?... ou quem sabe, amor? Amor por aquele ser miserável, cheio de pústulas e de odor fétido? Que não conseguia sorrir, falar, pedir, nem mesmo olhar? Que as enfermeiras evitavam respirar o mesmo ar e improvisavam luvas para toca-lo?... mas quem sabe, não é amor? Somente esse sentimento consegue superar as maiores barreiras que essa vida nos oferece.

            Agora, olhando você e vendo seu comportamento, me mandando para longe de você por causa de aspectos do meu comportamento, e sabendo você, com certeza, com capacidade igual ou maior que aquela mulher, de amar, por um momento senti inveja daquele paciente. E lá no íntimo veio o desejo de ter uma doença semelhante, pois com certeza eu não poderia ter o mesmo comportamento que tenho, e mesmo que ficasse deformado e brutalizado numa cama de hospital, teria você ao meu lado, me confortando, me amando, mesmo que eu não pudesse olhar nos seus olhos e retribuir. Mesmo que você passasse a mão carinhosamente na minha cabeça e beijasse meu corpo asqueroso, e eu não pudesse pelo menos sorrir para você. Mas como o amor está enraizado mais profundamente do lado espiritual, eu me regozijaria por meu amor está sendo plenamente correspondido, apesar dele não poder se expressar.

            Mas não tive essa “sorte”. A minha doença é invisível para todos aqueles que me rodeiam, com exceção daqueles que me amam profundamente. É o lado terrível de sua natureza, mais terrível que o Feitiço de Átila, pois nele os amantes apesar de não poderem se tocar enquanto humanos, o amor deles continuava existindo. O meu feitiço ou doença destrói o amor do meu ser amado e me deixa com o meu incólume, sofrendo por mim e por ela.

            Não tenho um antídoto para esse mal, nem um bruxo que desfaça o feitiço. Tal qual os personagens de Dante, tenho que sofrer e arder nas chamas da saudade, não depois da morte e sim agora, em pleno uso de minhas razões. Pois essa é a natureza da minha doença.  

Publicado por Sióstio de Lapa
em 25/10/2020 às 00h19
 
24/10/2020 00h19
AMEAÇA AOS DEUSES

            Este é o quinto texto escrito no camping há 24 anos, após eu ter sido expulso de casa pela minha segunda ex-esposa...

            10-09-96 (21h40)

            Acabei de ligar para você. Estou com o coração angustiado. Como se uma tranca tivesse lhe fechando e apertando meu fôlego. Tudo isso porque lhe senti tão distante, como se eu fosse um fato já consumado. Enquanto luto por todas as formas vislumbrar uma condição para que possamos viver felizes, do seu lado sinto a confirmação de algo já perdido para sempre.

            Sinto vontade de chegar para você e dizer: Pronto Sônia, meu amor, minha paixão, meu tudo (pode ser uma doença amar tanto assim, eu não vejo ao meu lado, exemplos iguais ao meu). Vou me transformar totalmente e ser como seu coração quer que eu seja. Ficar aninhado ao seu lado, abafar minhas motivações, meus instintos de macho e ficar acomodado ao seu lado, vivendo para lhe ver chegar, sofrendo quando lhe vir sair para trabalhar. Até no meu trabalho não teria mais nenhum tesão. Estaria todo voltado para você, lhe enroscando, lhe envolvendo, lhe preenchendo todos os espaços. Sei que isso seria uma forma de suicídio, pois esqueceria totalmente de mim e no meu campo de interesse só veria você. Se é uma forma de suicídio, também vem a calhar, pois a sensação é tão negra que até eliminar a vida para fugir dela seria uma solução de alívio. E por que matar o corpo e deixa-lo entregue aos vermes? Melhor seria deixa-lo escravo de alguém que tanto amamos.

            Oh! Deus, por que não fizestes nós, homens e mulheres com as mesmas motivações, os mesmos interesses? Por que colocastes essas diferenças tão dolorosas que nos machucam quanto mais nos amamos? Será que é verdade a lenda que diz que ao nos completarmos com outro ser humano podemos nos igualar aos Deuses, e esses, preventivamente, colocou em nossa cabeça, naquela região mais profunda, que sutilmente controla todo o comportamento, motivações, diferenciações, justamente montadas para quando o amor, o cimento que promove a união de dois seres, ao chegar nessa profundidade, desperte cada vez com mais força esses impulsos incompatíveis.

            Ah! Meu amor, se tudo isso é verdade e agora estamos sofrendo essa defesa dos Deuses é porque o nosso amor chegou a um nível de ameaçar os seus poderes divinos. Eles podem se sentirem vitoriosos por terem conseguido nos afastar, mas não conseguirão transformar o meu amor por você por qualquer um outro tipo de sentimento. Eu posso sentir todas as penas do inferno, como estou sentindo agora, mas lá no fundo do meu coração existe um grito que não quer calar...

            TE AMO, SÔNIA! 

Publicado por Sióstio de Lapa
em 24/10/2020 às 00h19
 
23/10/2020 00h19
E O MONÓLOGO CONTINUA...

            Este é o quarto texto escrito no camping há 24 anos, após eu ter sido expulso de casa pela minha segunda ex-esposa...

            10-09-96 (17h39)

            A noite está caindo. Logo mais irei ao plantão. O pessoal vizinho procura puxar conversa, fazer amizade, entrosar... e eu monossilábico. À menor chance corro a ficar sozinho para continuar meu monólogo com você através desse caderno.

            Pela manhã comi um pedaço de melancia. Agora estou a mordiscar umas uvinhas. Comprei alguns biscoitos e frutas no supermercado. Agora estou com medo de estragar, pois continuo sem apetite e geladeira para mim é um luxo.

            Fico pensando aonde está você, o que está fazendo. A vontade é grande de ir lhe procurar, lhe abraçar, beijar. Sussurrar no seu ouvido aquilo que meu coração choraminga. Mas fico a pensar o quanto você sentiu-se machucada por aquilo que fiz e acho que minha presença vai remexer sua ferida.

            Por outro lado, também estou sofrendo por causa de suas reações. Vê? É um circulo vicioso que se alimenta dos nossos egoísmos. Podemos pensar: mas não combatemos tanto o egoísmo? Por que ainda somos vítimas dele? Talvez porque nunca o consigamos eliminar por completo. Dessa forma, o que resta fazer é aperfeiçoar e fortalecer o nosso amor, pois ele trará a tolerância necessária para vencer o egoísmo.

            Mas tenhamos muito cuidado em não desenvolver um amor contaminado pelo egoísmo, pois, então, dessa forma, nosso amor morre no nascedouro. Já imaginou, se você fosse cobrada quanto ao tipo de roupa, corte de cabelo, amizades, enfim, tudo que uma mente cheia de amor-egoísta, ciúme, fosse imaginar servir de atrativo para outros homens? E por isso já me sentisse traído? 

            Talvez a comparação não seja proporcional aos fatos acontecidos comigo. Mas, se houvesse uma reversão na minha ótica e eu passasse a ver o mundo como você, existiria uma possibilidade muito grande de meu comportamento, minhas preocupações se voltarem para essas coisas triviais, como vejo acontecer com tantos homens, que vivem com suas companheiras em eternas briguinhas que me parecem fúteis. 

            Você pode argumentar que há brigas entre eles, mas a relação permanece, e em nosso caso não há brigas, porém, cada confronto nosso há uma possibilidade enorme de destruição do nosso relacionamento.

            Veja só, agora, minha situação. Sozinho, fora de casa, longe do conforto e aconchego que construímos juntos. Por que? Falta de tolerância suficiente para se colocar no lugar do outro. Ver o que o outro faz, fez e está fazendo, procurando ser o mais imparcial possível ao ouvir a “voz do coração”. Digo isto porque faço assim. Mesmo machucado fisicamente (quando você me agride) ou emocionalmente (quando você me manda embora no meio da madrugada e fico cochilando pela beira da praia, sendo acordado por guardas me aconselhando ir para casa porque ali é perigoso, sem eu poder dizer para ele que bem que eu queria voltar para casa, mas não posso), fico no seu lugar e procuro entender as razoes do seu gesto. Entendo, tolero e não deixo de lhe amar nem um pouquinho por isso. Pelo contrário, faço uma admoestação calada a mim mesmo por estar lhe provocando tanta dor, decepção e outras coisas mais que você me acusa (e deve ser verdade, pelo menos para você, pois você está sentindo).

            A hora está chegando e tenho que ir para o hospital. A partir do momento que chegar, ficarei aguardando com bastante intensidade o seu telefonema para falar comigo. A medida que o tempo for passando e esse telefonema não chegar, acho que ficarei decepcionado, mas também tenho certeza que eu ligarei para ouvir sua voz e talvez... uma palavra de carinho.

            Tchau!

Publicado por Sióstio de Lapa
em 23/10/2020 às 00h19
 
22/10/2020 00h19
VENTO FORTE

            Este é o terceiro texto escrito no camping há 24 anos, após eu ter sido expulso de casa pela minha segunda ex-esposa...

            10-09-1996 (7h50)

            O vento sopra forte nas folhagens. Ouço o barulho e sinto o frio gostoso no meu corpo. Estou sentado ao sol com os pés apoiados no para-choque do carro.

            Hoje acordei cedo e um pouco incomodado. Não estou acostumado com a dureza do chão, apesar do colchonete. 

            Li um pouquinho, depois, ao levantar, coloquei os joelhos no chão e numa atitude de subserviência, implorei ao Senhor ou qualquer Poder Superior que me fizesse forte, como um instrumento do seu amor; e que proporcionalmente me desse igual força de tolerância, de compreensão.

            Desculpe, amor, não ousei pedir a Ele que me transformasse. Mas, de todo o coração, apesar de meus sentidos terem o sentido da humanidade como um todo, no meu coração a motivação era para nós conseguirmos chegar a um ponto de concordância, de entendimento e de plenitude na vida.

            Aqui é tudo tão gostoso, apesar da aspereza que a Natureza nos oferece. Parece estarmos mais perto de Deus. Se você estivesse aqui comigo tenho certeza que estaria achando maravilhosa a experiência.

            Também preciso lhe contar as trapalhadas. Ontem cheguei aqui já estava escurecendo e foi uma dificuldade para arrumar minhas coisas; para completar, estava chovendo. Ficou tudo molhado, cheio de areia. Os colegas, solícitos, me arranjaram vassoura, bolachas, água... essas coisas. Ao ir dormir fui vestir aquele blusão que compramos em São Paulo. Aí percebi que estava com o seu. Fui dormir com a barriga descoberta.

            Depois vi que tinha lembrado da escova, creme dental e perfume, mas esqueci sabonete, pente e o sapato branco do plantão. Não sou acostumado a viajar sozinho nem a pensar em sair de casa nessas circunstancias. Até mesmo quando viajo sozinho, fui acostumado a não me exercitar em tirar aquilo que vou precisar.

            Veja só! Pensava que não tinha nenhuma dependência, pelo menos severa. Mas, tenho você! Quando estou longe e passo dias sem poder lhe ver, você já sabe qual é a minha reação. Fico macambúzio, sem qualquer motivação para qualquer tipo de interação social, como aconteceu daquela vez em Belo Horizonte.

            Mas quando estou longe (e não é tão longe assim) com a possibilidade de não mais a tocar (não digo amar, pois sempre irei lhe amar, quer estejas perto ou longe dos meus olhos, pois qualquer distancia é impotente em lhe afastar do meu coração) um aperto estranho me envolve o corpo e a mente, e não consigo pensar em outra saída. Talvez se anestesiássemos nossos neurônios. Parece que é isso o que faz os alcoolistas e ao ter essa percepção, me deu uma extrema simpatia a esses indivíduos. Porque, se tal acontece, realmente eles são vítimas de um sentimento indizível através de palavras, cujo consolo encontram no álcool e que depois torna-se o seu algoz.

            É tão bom sentir todo esse amor que sinto pela Natureza. Mas é tão melhor ter alguém que eu possa canalizar todo ele e me sentir maravilhoso!

            Esse alguém, amor, eu já encontrei e já o tenho (ou tive?) e meu desejo é permanecer com ele para sempre, pois já ultrapassou os limites biológicos, materiais (pelo menos para mim é assim) e está existindo numa superestrutura espiritual onde o olhar, o sorrir, o tocar, consegue fazer vibrar todo o meu ser, e não o esforço físico de uma relação sexual.

            Deixa eu parar um pouquinho para sair. Logo mais volto a conversar.   

Publicado por Sióstio de Lapa
em 22/10/2020 às 00h19
 
21/10/2020 00h19
MINHA AMADA

            Este é o segundo texto que escrevi naquele caderno que já falei antes e que registrava meus sentimentos depois que fui de casa expulso pela minha segunda esposa...

            09-09-96 (21h30)

            Minha amada!

            Estou aqui sozinho, no meio do campo, dentro de uma barraca recém adquirida. Como eu queria que você estivesse aqui, mesmo se não fizesse sexo. Seria tão bom sentir seu calor, seus carinhos, sua voz... me aconchegar junto de você e me estirar no chão, como fizemos recentemente em São Paulo.

            Eu sinto que ao longo do tempo que convivemos, meu amor aumentou, e acho que continua a aumentar progressivamente. Tanto é verdade que aqui estou, sozinho, ouvindo a chuva cair no teto da barraca e não tenho nenhum interesse em sair e procurar alguém para me envolver sexualmente. Isso é uma prova mais do que suficiente para mostrar que o amor que sinto por você é maior que qualquer impulso sexual que eu possua. 

            Mas, você não pode jamais esgrimir esse amor e tentar inibir esses impulsos, pois eles são fortes e estão enraizados no fundo da nossa cabeça e podem causar graves estragos no nosso amor. E não quero que jamais isso aconteça. Por isso respeito tanto a liberdade que eles exigem, pois, sem eles sentirem, já estão tão limitados!

            Lembro que num passado recente eles tinham uma potencia incrível e não me deixavam parado um só instante. Hoje me surpreendo passar dias, semanas, meses até, curtindo ficar só ao teu lado, ouvindo discos, vendo filmes, fazendo feira, passeando, chafurdando na cama... e às vezes sexo!

            Como gostaria agora de lhe beijar. Vou deitar no meu chão. Tchau!

            Lendo agora esses textos, 24 anos depois de escritos, quando eu tinha 44 anos, em plena efervescência dos meus hormônios sexuais, vejo o quanto eu prezava o meu relacionamento conjugal, o quanto tinha prazer com ele em todas as instâncias comportamentais. O fato dessas forças hormonais me levarem a desenvolver afetos fora do casamento, que chegavam ao relacionamento sexual e até a geração de filha, como foi o caso e daí, por eu ter informado, ter sido expulso de casa, não eliminavam a qualidade do meu afeto conjugal. Pode ser que afetasse o quantitativo de tempo que eu passasse com minha esposa, já que eu estaria envolvido com outra pessoa.

            Essa conjuntura é interessante, pois minha parceira extraconjugal sabia do meu casamento e da minha intenção de não acabar com minha esposa para ficar com qualquer outra pessoa. Mesmo assim minha parceira extraconjugal tinha afeto suficiente para ficar dentro desse relacionamento, e até gerar um filho nesse contexto, mesmo que não fosse um filho planejado, mas que foi devidamente aceito e registrado. 

            Será que ela fez o correto tendo fez o que fez? Hoje, com o aval desses 24 anos passados, a minha consciência diz que não, que ela fez errado, que poderíamos viver até hoje com o mesmo clima de harmonia e felicidade, se ela não desse tanto valor a esses encontros que todos sabiam ser fortuitos e não permanentes.

Publicado por Sióstio de Lapa
em 21/10/2020 às 00h19
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