Tudo depende da sinceridade com que encaramos as diversas facetas da vida. Se eu não tivesse encarando com tanta sinceridade esse mergulho num deserto mental, onde deixo mais afastado as coisas materiais e fico mais próximo das coisas espirituais, para testar a capacidade de levar à frente a vontade de Deus que Ele colocou em minha consciência, certamente eu não teria passado pela aflição que passei há poucas horas. Quando resolvemos nos isolar e ficar mais próximo de Deus uma série de fatores contrários chega à nossa vida para testar nossas convicções. Foi assim que aconteceu com Jesus. Eu esperava sair do deserto vitorioso desse embate com as forças contrárias aos desígnios divinos, como Jesus o fez. Mas no meu caso parece que tudo está acontecendo ao contrário. Não estou contabilizando nenhuma vitória até agora, a não ser uma discreta melhora na comunicação com Deus através das orações. Hoje a tarde minha derrota foi acachapante, vergonhosa, humilhante. Se não fosse pelo meu dever de honestidade e transparência, eu nem registraria aqui neste espaço, mas se eu não fizesse isso seria mais uma derrota. Afinal eu devo registrar tudo que acontece comigo no deserto, de bom ou de mal. Afinal se não fosse registrado o que aconteceu com Jesus no deserto, hoje não teríamos esse belo exemplo para orientar e reformular nossos comportamentos.
Hoje foi dia do meu trabalho em Caicó. Desde ontem pensei em não comer nada hoje, deveria fazer parte do meu teste no deserto, resistir ao desejo de comer. Para mim não poderia ser tão difícil, eu que consigo ficar três dias sem me alimentar e não me sentir desconfortável. Mas, logo no caminho da ida, em Santa Cruz, entrei na padaria onde costumo tomar o café da manhã. Fiz o mesmo prato das semanas anteriores. Observei que não cumpri o que havia planejado, mas não dei muita importância. Pensei simplesmente, que era só esse café da manha, não haveria de fazer tanto mal Parece até que eu não estava no “deserto”! No caminho de volta, parando o transporte em Tangará como sempre faz, eu como estou fazendo nas últimas semanas, fui ao restaurante peguei o prato e o enchi normalmente e pedi a mistura de peixe e porco, regado com coca-cola e acompanhado por duas bananas. Belo deserto!
Na hora e meia que faltava para chegar em casa, senti que os intestinos estavam incomodados. Comecei a sentir a produção de gases e as cólicas suaves querendo expulsar o que eu havia colocado para dentro. Não era nada tão forte, tanto é que pensei em ir para o apartamento de ônibus mesmo. Mas por prevenção, resolvi ir de táxi. Foi a minha sorte. Logo que entrei no carro e no trajeto de 15 minutos até chegar ao destino, as cólicas foram aumentando progressivamente. É tanto que sentei no banco de trás do carro em me prendi com as pernas. Acredito que o taxista tenha ficado preocupado comigo, um passageiro tão esquisito, que entrou no seu carro e disse apenas o destino de forma monossilábica e ficou calado, meio torto no centro do banco, sem dizer uma palavra sequer durante todo o percurso. Ele colocava músicas românticas no carro e eu tentava rezar para o Pai me ajudar a controlar e eu não me sujar naquela ocasião. Tentava rezar o Pai Nosso, mas não saía do primeiro verso, “Pai nosso que estás no céu”... usava esse verso como refrão, repetidas vezes, como forma de suplicar ajuda ao Pai ao mesmo tempo um pedido de perdão, pois já tinha consciência que isso era consequência da gula que não consegui controlar.
Felizmente cheguei no apartamento e senti uma leve aliviada ao descer do carro. Mas logo que peguei o elevador para o meu apartamento no 4º andar, senti ao subir uma fortíssima cólica que venceu minha resistência e senti descer os dejetos. Mesmo assim eu tentava atenuar o prejuízo, continuava a me conter enquanto corria para abrir a porta e ir logo para o banheiro. Mas foi derrota total! Já em frente ao sanitário, eu não consegui vencer a pressão e toda sujeira enchia minha roupa intima e se espalhava para a calça e pernas. Sentei com roupa e tudo no vaso sanitário, mas agora era tarde... eu estava todo sujo e a medida que eu ia tirando a roupa, sujava tudo ao redor. Fiquei aliviado, a sujeira saíra toda de dentro de mim, mas agora eu estava cercado pela sujeira externa e o fedor que se espalhava ao redor. Deixei tudo ao lado do sanitário e entrei no Box para limpar o corpo. Passei sabonete com antibacterianos no corpo repetidas vezes até sentir que estava limpo e sem fedor. Agora eu tinha que resgatar a calça. Coloquei dentro do Box e comecei a lavá-la e tomar outro banho concomitantemente. Fiz várias lavagens na calça grossa até verificar que não tinha mais sujeira. Fiz uma última lavagem também com o sabonete antibacteriano, a torci e deixei pendurada no Box do banheiro. Agradeci por ela ter me protegido, de não ter deixado eu espalhar a sujeira pelo caminho. Deixei ao seu lado o cinto que também foi lavado e perfumado. Depois foi a vez da cueca, mas essa foi a mais comprometida. Ainda tentei a resgatar, mas ela estava totalmente impregnada. Foi o jeito sacrificá-la, colocá-la no lixo. Peguei depois um rolo de papel higiênico e limpei onde existia sujeira, na tampa, no bojo, no chão... depois que não vi mais sujeira repeti o mesmo processo com o papel impregnado de perfume de lavanda. Ao terminar tudo espergi a lavanda por todo o ambiente do banheiro. Terminei a minha limpeza pessoal, também usei a lavanda e vesti uma roupa limpa e vim fazer esse depoimento e reflexões.
Se eu tivesse com uma das minhas companheiras mais próximas, com certeza eu teria recebido auxílio e talvez não tivesse percebido as consequências do que fiz e do que era necessário fazer para corrigir. É como um dependente químico que precisa sentir os problemas que causa ao seu redor para pensar numa recuperação. Para isso é que serve o “deserto”, para observarmos nossas faltas e consequências e assim ter maior motivação para corrigir os erros.
Estou agora envergonhado, mas pelo menos eu tive a coragem de fazer o relato, de expor minhas fragilidades, que eu não sou o super homem ou santo que muitos pensam. Tenho também a percepção deste deserto que estou dentro dele, que não é brincadeira, que devo respeitar suas condições e fazer o enfrentamento dos desejos incoerentes à vontade do Pai que chegam à minha consciência.
Seguindo as instruções que Deus me enviou, contidas no livreto “Imitação de Cristo” leio no item seguinte:
“2. Disse alguém: “Sempre que estive entre os homens menos homem voltei” (Sêneca, Epist. 7). Isso experimentamos muitas vezes, quando falamos muito. Mas fácil é calar de todo do que não tropeçar em alguma palavra. Mas fácil é ficar oculto em casa, que fora dela ter a necessária cautela. Quem, pois, pretende chegar à vida interior e espiritual, importa-lhe que se afaste da turba, com Jesus. Ninguém, sem perigo, se mostra em público, senão quem gosta de esconder-se. Ninguém seguramente fala, senão quem gosta de calar. Ninguém seguramente manda, senão o que perfeitamente aprendeu a obedecer.”
Esta lição é importante, pois está cheia de prudência. É verdade que a turba quase sempre está sintonizada com sentimentos ignóbeis. Ver exemplos de jovens de boa educação que juntos chegam a queimar pessoas que dormem nos bancos das praças. Eu sinto esse efeito também no meu comportamento. Quando estou junto da turba a tendência é que me deixe envolver com suas atitudes abjetas, irônicas, maledicentes, como se fosse algo natural. Então, o sentido de entrar no deserto para mim é que eu me afaste dessas diversas influências do ambiente em que vivemos e assim possa observar com mais clareza e menos influência o que depende mais de mim quedos outros. Onde estão as minhas faltas, o meu pecado, que me distancia da vontade do Pai, que faz eu entrar em desvio em busca dos interesses e prazeres da carne.
Observarei o conteúdo da minha fala junto aos outros, já que não posso me isolar totalmente num mosteiro ou num deserto real. Verei como me comporto em cada situação, com as diversas pessoas que se aproximam de mim pelos mais diversos motivos. Procurarei me afastar da turba, e do grupo que eu me aproximar tentarei levar os pensamentos e comportamentos para temas mais construtivos dentro de nosso processo evolutivo.
O Pai encontra todos os modos de abastecer seus filhos com as informações necessárias ao momento evolutivo que cada um atravessa. Estou agora num momento decisivo da minha vida, imitando de forma adaptada a permanência do Seu filho muito amado no deserto, conforme a Sua instrução, para que eu também fosse testado nas minhas aspirações e capacidade de realizar a missão que Ele me confiou.
Então Ele me envia mais uma instrução através de um livreto que fala justamente sobre isso, a “Imitação de Cristo”. Diz o seguinte:
“1. Procura tempo oportuno para cuidar de ti e relembra a miúdo os benefícios de Deus. Renuncia às curiosidades e escolhe leituras tais, que mais sirvam para te compungir que para te distrair. Se te abstiveres de conversações supérfluas e passeios ociosos como também de ouvir novidades e boatos, acharás tempo suficiente e adequado para te entregares a santas meditações. Os maiores santos evitavam, quando podiam, a companhia dos homens, preferindo viver com Deus, em retiro.”
Deus coloca dessa forma, as instruções básicas de como devo proceder nesse período da quaresma, quando, imitando Jesus, entro numa espécie de deserto que minha mente elabora ao encontro com Deus.
A cada momento da minha rotina, que não posso abandonar, pois o trabalho também é uma prece, devo encontrar o tempo para observar minhas falhas e relembrar todos os benefícios que o Pai coloca ao meu alcance a cada instante da vida.
A minha leitura deve ser mais selecionada, devo ler principalmente, e nesse período exclusivamente, os livros que me levem ao arrependimento das faltas identificadas e ao esforço para corrigi-las.
Evitar as conversas supérfluas, irônicas, maledicentes, capciosas, é a tarefa mais difícil de realizar, pois estou mergulhado nesse hábito ao lado dos colegas de trabalho, amigos ou parentes. Mesmo que sejam pessoas bem intencionadas, não percebem o estrago que fazem na vida de outrem quando são maledicentes. É diferente do malvado, que mesmo sabendo desses efeitos maléficos mesmo assim o faz, exatamente por isto. Eu sei que não tenho más intenções, mas vez por outra estou me vendo praticando o mesmo mau hábito junto aos que fazem coro comigo na ocasião. Tenho que estar vigilante, nesta quaresma pelo menos, muito maior vigilância, para evitar participar das maledicências e de mim mesmo não as provocar. Confesso que mesmo dentro destes nove dias que já se passaram da Quaresma, lembro-me de ter ouvido, participado e até mesmo incentivado comportamentos tendenciosos em função de ações inadequadas de meus irmãos. Devo corrigir isso nesses 31 dias restantes da Quaresma! Devo lembrar sempre o comportamento do bom amigo: “escrever as injúrias na areia para que a primeira brisa da manhã as apague, e escrever os benefícios no mármore para que a esponja do tempo não os apague”.
Eu sabia que iria entrar nesse deserto mental para ser provado. Está acontecendo. Porem, muito longe do que aconteceu com Jesus, estou sendo vergonhosamente derrotado em todos os embates ocorridos até agora.
O primeiro que identifiquei foi o exercício da Caridade. Uma senhora me procurou no trabalho para conseguir um atestado para sua filha doente mental. Era um pedido fora de propósito, devia ser feito pelo médico que a acompanha no ambulatório e não por mim que estava num trabalho à serviço da Justiça. Também eram solicitados itens que somente quem poderia colocar seria o médico que a acompanha no ambulatório. Acontece que por motivos políticos a instituição não recebe atestados desse médico. Acontece que essa senhora não tem como conseguir esse atestado na rede pública, pois não existe essa especialidade no momento para atender a população. Mas eu usei de todos esses argumentos desfavoráveis para negar a confecção desse documento, aleguei até falta de ética ao colocar informações que eu não testemunhei no acompanhamento do caso. E tudo isso é verdade. Não adiantou nem a senhora tirar de sua bolsa a Bíblia e dizer que esse (Deus) era o seu advogado e que Ele iria resolver a situação. Foi embora e eu fiquei a meditar... Fui derrotado na primeira batalha. A Caridade veio para ser servida e eu privilegiei a arrogância, o legalismo mundano, a fria burocracia. Nem mesmo a lembrança escancarada do Pai e que ali estava uma irmã necessitada, e que se fosse uma irmã biológica eu teria atendido e atropelava toda a burocracia, leis e ética, fez eu recuar. O orgulho falou mais alto.
Logo depois, entra outra senhora com um pedido semelhante. Era esposa de um motorista que no passado me serviu, mas com os mesmos impedimentos burocráticos eu dispensei a senhora indicando outros locais onde seria feito de forma burocraticamente correta.
Mas o Pai não deixou passar essas falhas em branco. A única companhia que ficou comigo nessa quarentena no deserto, o meu pequeno cão, adoeceu e tive que levar ao hospital veterinário onde ficou internado.
À noite, na hora de dormir, fui conversar com o Pai. Foi uma conversa franca, pedi perdão a ele pela atitude arrogante, não solidária com o sofrimento do próximo, dos pacientes que me procuram. Perguntei também a Ele se esse sofrimento que causo nas minhas companheiras é na verdade vontade dEle, e Ele apenas me perguntou: “Estás amando incondicionalmente?”
Senti as lágrimas rolarem e fui dormir.
São duas tarefas importantes para quem está no deserto: oração e jejum. O jejum eu já pratico e não terei dificuldade em aplicar neste momento de permanência no deserto mental. Só que eu devo ser mais amplo. Domingo fui conversar com uma jovem sensível, muito espiritualizada, que estava sofrendo a dor da separação definitiva do seu noivo. Não encontrei muitas palavras confortadoras, ela tinha toda a dimensão do que estava acontecendo em sua vida e do comportamento inamistoso do noivo. Mas ao falarmos de jejum, ela me deu um toque que eu tenho que considerar. Ela disse que o jejum não era só de alimentos. Bem que eu já sabia dessa informação, mas estava apenas guardada na minha memória, sem uso. Agora eu sei que neste período de permanência no meu deserto mental, tenho que incluir outros itens. Um item de grande importância e que deve entrar no jejum é o de relacionamentos íntimos com qualquer pessoa. Deverei ficar só no meu apartamento. O fato de que nesse mesmo domingo que eu saí para falar com essa garota, o mal fez festa no meu apartamento, o refúgio do meu corpo e da minha alma, um local que deve ser consagrado a harmonia e a sintonia com Deus. Minha filha com ciúme impediu que eu me comunicasse com outras pessoas e a minha companheira mais pessoal, que ajuda na organização dos meus interesses materiais, me chama de mentiroso, que eu não sai no domingo para ajudar ninguém e sim me encontrar com outra pessoa. A desarmonia foi tanta que a raiva invadiu o meu coração e permitiu que saíssem da minha boca palavras duras com relação a elas duas. O filho de Deus que assumiu colaborar com a construção do seu Reino na Terra, não pode jamais ter esse comportamento, principalmente em pleno retiro para dentro do meu deserto mental. Se são essas as tentações Satanás, que usa pessoas inocentes para perturbarem o projeto divino, eu devo me afastar dessas inocentes pessoas, não posso deixar que suas persistências em pensamentos egoístas perturbem o projeto do Amor Incondicional que tenho dentro da consciência. Nada disso é definitivo, sei que o projeto dado por Deus para mim, implica no relacionamento interpessoal em todos os níveis, e principalmente os íntimos, nos quais há o embate frontal do amor romântico com o Amor Incondicional. Peço a todas pessoas do meu relacionamento íntimo desculpas por essa decisão que surgiu na minha consciência e que considero mais uma ordem de Deus. Peço desculpas também pelas palavras ásperas que dirigi a pessoas que amo, não é a agressão que sofri que vai justificar o uso por mim das mesmas armas do egoísmo, da arrogância, da intolerância. Podemos continuar a nos comunicar pelos meios digitais como já fazemos, mas evitarei o máximo o contato físico nesse período da Quaresma.