O CÃO
Era o primeiro dia de treino que eu iria fazer para a corrida natalina que se aproximava, daí a cinco dias. Assim que saí de casa devidamente preparado para enfrentar as ruas num roteiro que reproduzisse aproximadamente os 10 quilômetro que eu teria de enfrentar, encontrei um cão curioso com o que estava vendo. Acredito que ele seja morador da rua em que moro, em uma das muitas vilas que lá existem. O cão passou a me acompanhar com aspecto curioso e eu não me incomodei. Certamente logo passará sua curiosidade e me deixará, pensei. Como era ainda 4 horas da madrugada, o sol ainda não tinha saído, com certeza não existia naquele momento o seu dono para lhe chamar de volta, se é que esse dono existia. Por sua aparência descuidada, pêlos assanhados, apesar de um porte juvenil e atlético, poderia ser um cão sem dono, vadio que morava pelas redondezas. Sendo assim não me incomodei que ele me acompanhasse. Deixei os primeiros quarteirões para trás e quando não via o cão à minha frente, olhava para trás e lá estava ele, ainda a me seguir.
Dei as primeiras 1500 passadas e entrei no circuito do Campus Universitário. Imaginei que nesse espaço como não existiam casas residenciais o cão iria desistir. Tornei a me enganar. O cão parece que não ligava sobre se existia ou não casa por onde ele ia. Parece que o que importava era ele me seguir nessa atividade de correr interagindo comigo que em nenhum momento o repudiei. Observando os seus atributos físicos, notei que ele era realmente do sexo masculina e improvisei um nome para ele: Boy.
Começou a cair uma chuva moderada que logo molhou a camisa que eu usava com grossos pingos que caiam frontalmente à direção da minha corrida. Será que o Boy continuaria correndo comigo mesmo debaixo de chuva? Sim, continuava, nem a chuva era capaz de fazê-lo desistir. Mesmo correndo, não poderia parar mesmo, chamei-o pelo nome que o batizara e fiz um pequeno afago em sua cabeça. Isso o deixou mais encorajado e senti que o seu focinho tocava a minha perna, às vezes os dentes como se quisesse brincar comigo, com a parte do seu corpo mais aplicada para isso, a boca e os dentes. Não liguei para esse contato, percebi que ele não queria me ferir. No entanto sua brincadeira poderia me fazer tropeçar e quando percebi que estava ficando muito próximo e freqüente, dei um não enérgico para trás fazendo-o parar. Notei que ele se afastou, mas olhei para trás e percebi que ele continuava a me acompanhar. A partir daí ele não se aproximou tanto de mim, mas cruzava na minha frente como se quisesse fazer que eu voltasse. Será que ele estava cansado? Mas eu não poderia voltar. Caso ele não pudesse mais me acompanhar e parasse no meio do percurso, então eu não faria a volta completa no cinturão do Campus como estava pretendendo. Iria até a metade do trajeto e voltaria para o encontrar e assim o levar de volta para o local onde ele estava, pois poderia não saber voltar, uma hipótese que eu mesmo achava improvável. Mas ele não parava de me seguir, mesmo com esse zigue-zaguear que fazia vez por outra.
Continuamos a correr e eu passei a imaginar e fazer comparações. Pensava que esse trajeto que fazia agora com esse cão poderia ter um certo paralelo com o que acontecera na vida de Jesus. Ele veio para este mundo para desempenhar uma tarefa, poderia ser comparada com a minha corrida. Tinha um objetivo a ser cumprido. Na sua trajetória encontrou pessoas que lhe acompanhou até o fim, no calvário e daí para o Reino de Deus como ele havia prometido. Na minha caminhada com o cão não havia diálogos, não poderia prometer a ele nem ensinar nada parecido com o Reino de Deus. O que existia era uma interação durante a corrida/caminhada. Eu sabia que iria chegar a um destino, ele devia intuir isso também, só que não tinha certeza que final seria esse. Devia acreditar de alguma forma em mim, assim como aqueles discípulos acreditaram em Jesus. Da mesma forma que Jesus chegou a ser severo com um discípulo que o induzia a desistir da sua caminhada, prevendo o suplício do calvário que já estava se delineando, eu também era severo com o cão quando percebia que ele insistia para eu voltar cruzando o meu caminho ou abocanhando a minha perna. Finalmente a estrada circular fez o retorno e acredito que ele percebeu que mesmo não voltando por onde tínhamos vindo, nós estávamos indo em direção à nossa origem. Deixou de cruzar tanto o meu caminho e agora já corria ao meu lado. Voltamos a entrar nos quarteirões com casas e consequentemente com outros cães. Alguns latiam outros tinham atitudes amistosas. Boy geralmente parava um pouco e eu ficava a pensar se ele não iria ficar com aquele outro animal, fazer uma outra amizade. Mas logo ele voltava a se emparelhar comigo. Parecia que ele estava disposto mesmo a ir até o fim da minha corrida. O que surgisse ao lado não o tiraria desse propósito. Parecia até que ele cumpria a profecia dita no ditado popular: Enquanto os cães ladram, a caravana passa. Quer dizer, podem surgir diversos estímulos ao redor, agressões, medos, intimidações, humilhações, provocações, mas quando se tem um propósito na vida, nada nem ninguém deve desviar a atenção da pessoa.
Finalmente cheguei ao meu destino, a porta da minha casa. Parei e olhei para o Boy. Acariciei sua cabeça e pedi que esperasse um pouco. Entrei em casa e trouxe um pouco de ração para ele. Ele já estava indo embora, mas assim que o chamei ele voltou e lhe ofereci a ração deixando-a perto dele. Mas ele queria me seguir para dentro de casa. Mostrei a ele que não com firmeza e apontei a ração. Fechei a porta e fui para o banho. Quando sai para o trabalho não encontrei mais o Boy pelas imediações. O depósito com ração estava cheio, da mesma forma que o deixei. Certamente Boy não queria a ração, queria apenas manter a companhia, o amigo que ele tinha feito durante a corrida. Mas isso não seria possível. Eu tenho a minha vida e ele tem a dele. Ele não pode me acompanhar em outras jornadas e com certeza não gostaria de ficar preso a me esperar para lhe ver somente à noite. O nosso companheirismo durante a corrida cumpriu o seu objetivo. Interagimos como amigos o tempo que foi necessário. Caso nos vejamos outra vez qualquer dia, sabemos que somos amigos e que podemos ficar, caminhar ou correr lado-a-lado enquanto for conveniente para nós. E que depois disso a vida continuará, ele com seus amigos e eu também, cada um por seu lado até um novo reencontro enquanto a roda dos relacionamentos permitir.
Assim é a vida. A cada momento encontros e reencontros. Cada pessoa é um amigo em potencial com o qual podemos compartilhar a beleza da vida naquele momento que é um momento mágico. E por ser mágico não podemos capturá-lo para sempre ficar ao nosso alcance, pois a cada tentativa de fazer isso ele se dissolve no ar e se transforma muitas vezes em algo ruim, amargo, com gosto de fel, de prisão. São os relacionamentos que trazem a beleza diversificada da vida, querer os podar de qualquer forma, mesmo que seja evocando o nome do amor, sempre é um equívoco que deixa a vida em preto-e-branco com o nome de monotonia.
Por onde eu andar, com quem eu esteja, a qualquer momento, a minha mente tem sempre registrada que existe no mundo em que eu vivo um cão chamado Boy, que talvez não tenha casa, não tenha dono, mas que somos amigos. Que vivemos geralmente distantes, ele no seu mundo e eu no meu, mas quando acontece de nos encontrarmos ele ilumina o meu mundo e eu o dele. Correremos com mais confiança um ao lado do outro e nesse momento as flores têm mais perfume, os pássaros cantam mais afinados, o sol brilha e a tudo ilumina com mais beleza e esplendor. A magia recomeça mais uma vez!
Sióstio de Lapa
Enviado por Sióstio de Lapa em 26/12/2011