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UMA VIDA EM TRES DIMENSÕES
Posso considerar que minha vida se desenvolve em três dimensões, no que diz respeito aos relacionamentos afetivos e o padrão cultural vigente. É sabido que a nossa cultura defende um relacionamento de natureza monogâmica, apesar de toda a pressão biológica no sentido contrário, principalmente no lado masculino. Então essa é a dimensão aceita socialmente e onde todos procuram seguir, pelo menos do ponto de vista externo, já que na intimidade muitos não a acatam e deixam fluir a própria natureza biológica em diversos relacionamentos.
Comecei a vida totalmente dentro desse paradigma cultural e desde a adolescência nutria sonhos de amor romântico, onde a escolhida do meu coração, seria a minha companheira por toda a vida, dentro do contexto de contos de fada da eternidade do relacionamento. Pensava que o sentimento que fosse surgir deveria ser permanente e nunca fosse ser alterado. Que o fogo da paixão poderia até ser atenuado, mas nunca deixaria de existir, que nunca surgiria interesse por outras pessoas. Assim casei dentro dessa expectativa e o tempo foi mostrando o quanto eu estava errado. Sem nenhuma justificativa acontecer para a mudança de sentimentos, notei que o desejo ardente por minha esposa ficou bastante reduzido e uma vida muito mais próxima da fraternidade do que da conjugalidade. Acontecia o relacionamento sexual, mas era como se um apetite que se renova com o tempo acontecesse e eu deveria suprir com a minha companheira. Era como a fome que chega apesar de termos saciado no dia anterior e se o feijão está a nossa disposição voltamos a fazer uso dele. Caso eu não tivesse contato com outras pessoas até que eu poderia viver dessa forma para toda a vida com minha esposa. Acontece que o contato com outras mulheres é inevitável e inevitável também foi o desejo que passou a surgir de forma automática de possuir aqueles corpos que também demonstravam querer ser possuídos. Foi essa pressão que passou a questionar a correção do paradigma em que eu estava inserido. Como era que um paradigma que condena a aproximação íntima entre duas pessoas que assim o desejam era correto? Essa dúvida começou a criar corpo na minha consciência e forçar a mudança do meu próprio paradigma, mesmo que isso fosse de encontro ao paradigma cultural da minha sociedade.
Dessa forma comecei a construir uma outra dimensão na qual, sim, esses relacionamentos extra-conjugais eram possíveis, e de forma bilateral, tanto o homem (marido) como a mulher (esposa) podiam ter suas oportunidades de forma justa e amorosa. No início para mim mesmo foi um processo doloroso, pois isso implicava na destruição dos meus preconceitos machistas que impediam da minha mulher ter um relacionamento íntimo com outro homem. Mas consegui vencer esse preconceito. Porém a minha luta era interna, não explicava isso para ninguém. Apenas o resultado dos meus pensamentos iam se manifestando na realidade ao meu redor. Depois que minha esposa tomou conhecimento da nova dimensão em que eu vivia, de eu ter lhe explicado e justificado a nova forma do meu pensamento, ela tentou seguir os meus passos. Tentou se relacionar com outros homens e até chegou a se apaixonar por outra pessoa, mas não conseguiu superar uma fase de paixão que eu tive por outra mulher. Me expulsou de casa e terminei por morar com essa outra pessoa. Como já sabia do que estava por vir, pois a dimensão do meu pensamento e comportamento já era outra diversa da sociedade, e como essa minha nova companheira também estava vivendo na dimensão cultural tradicional, sabia que conflitos novos iriam surgir. Para tentar evitar uma nova separação e manter uma convivência com esta minha nova companheira, combinamos em viver como amigos dentro de uma mesma casa e romper o casamento. A tentativa não deu certo e mais uma vez fui expulso de sua casa.
Então cheguei agora no ponto de uma terceira dimensão da vida, onde a possibilidade de conviver com uma companheira na mesma casa deixou de existir. A condição de “amiga” por uma mulher que experimentou um relacionamento íntimo parece que é muito difícil. Portanto, como o meu paradigma de vida defende a expressão e vivência de um amor não exclusivo, incondicional, isso leva a um conflito para qualquer mulher que se aproxima de mim cujos princípios estejam sintonizados com a cultura que impera ao nosso redor. Sempre vai querer ser a mulher exclusiva da minha vida e que eu seja o seu homem exclusivo. A primeira condição não me incomoda e acho até bom que seja assim, mas a segunda, de eu ser uma pessoa que tenha um amor exclusivo para ela, sei que não irei cumprir. Portanto, tenho que aceitar dentro dos meus paradigmas essa condição da existência: viver sozinho. Qualquer pessoa do meu relacionamento poderá ter acesso à minha casa, sem nenhum medo de ser atacada por quem quer que seja, por constituir uma ameaça de eu ser roubado por alguém, já que eu não pertenço a ninguém. Dentro dessa nova dimensão da vida, proponho ser um bom amigo para quem assim se dispor a dividir alguns momentos da vida comigo. Não tenho o perfil de deixar amizade antiga porque encontrei uma outra, mais jovem ou que ofereça mais vantagens. Minhas amizades se fortalecem ao longo do tempo, mesmo que surja uma outra com um maior apelo sexual. Posso até despender um pouco mais de tempo para essa nova amizade com um apelo sexual mais forte, mas nunca ao nível de desprezar as antigas.
Acredito que irei seguir nessa dimensão até o fim da vida. Caso o tempo me leve a incapacidade física ou mental, acredito que se não houver uma amiga que queira tomar conta de minhas necessidades, os filhos estarão em condições de assumir, pois todos foram tratados com justiça e amor, apesar de mães diferentes.

(produzido em 04-03-10)
Sióstio de Lapa
Enviado por Sióstio de Lapa em 30/12/2011
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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr