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A SÍNDROME DO SACO SEM FUNDO
Professor Florentino, ou Flor, como alguns gostavam de chamar para o ver irritado, era um homem atarracado, de passos pesados e barriga avantajada. Sofria de um mal dos olhos que o fazia sempre usar colírio e enxugar o excedente. Daí porque ele não gostava do diminutivo que usavam à sua revelia, pois os meninos brincalhões queriam dizer que ele aguava seus olhos de flor. Ensinava em escola particular, era um bom professor, mas um tanto sorumbático, não tinha o espírito brincalhão ou irônico dos professores que faziam sucesso com a estudantada.
Gaby e Suzy eram gêmeas e juntas com Marli gostavam de sentar nas primeiras cadeiras. Todas três tinham um aspecto físico parecido e podiam passar como irmãs. Cabelos longos e dourados emolduravam suas faces acetinadas onde os olhos castanhos eram protegidos por grossas sobrancelhas. Tinham um ar doce e eram bastante sensíveis, mas se sentiam incomodadas com aquele professor melancólico que não sabia enfeitar suas aulas. Ainda por cima, parece que ele tinha uma predileção em olhar para elas e sempre que isso acontecia o seu mal lhe atacava sem falhar. Tinha que tirar o colírio e usar ali mesmo, no meio da aula. Mas a gota d’água aconteceu num dia em que o professor passou um problema do quadro e enquanto os alunos tentavam resolver, ele passeava entre as cadeiras. Ao passar próximo das meninas, tocou de leve nos cabelos de Gaby, como um afago suave. As três não disseram nada, mais ficaram irritadas com esse gesto e nas aulas dele, trocavam de lugar com os colegas e ficavam no fundo da sala, onde era mais difícil ele chegar perto. Notaram que ao fazer isso, parece que ele ficou mais macambúzio e sua doença pior. Não prejudicava suas aulas, parece que quanto mais sua alma se escondia para dentro dele, mais voltava de lá com todo o saber que ele tinha e transmitia aos seus alunos. Não era um professor hilariante, mas definitivamente, era um professor eficiente. Mas as garotas não consideravam isso, estavam mais interessadas nos aspectos formais das aulas engraçadas do que na facilidade da absorção dos conteúdos. Combinaram em ir até a diretoria e sugerir que fosse trocado esse professor por outro mais interessante.
A diretora concordou em ouvi-las e após o relato de suas reclamações e sugestões perguntou se podia contar para elas uma pequena história e se elas podiam guardar o segredo. As meninas curiosas, de imediato disseram que sim.
A diretora disse que o colégio onde elas estudavam estava avaliado em milhões. Foi construído com suor e muito trabalho por uma pessoa humilde, que saindo da pobreza com seu esforço e muita fé, fez esse império educacional, científico, associado a fé espiritual. Usava com sabedoria a capacidade de ganhar dinheiro com a fraternidade. Todo ano após o balanço financeiro das atividades ele dividia o lucro da escola: 50% era dividido como bônus para todos os funcionários; os outros 50% ele autorizava que fosse repassado aos alunos mais carentes na forma de bolsa. O serviço social da escola devia identificar aqueles que tinham mais necessidade e garantir uma bolsa parcial ou até mesmo total de acordo com as necessidades da família. E tudo isso deveria ser feito sem nenhuma divulgação. Todos os alunos que possuem suas bolsas ninguém sabe, são em tudo considerados como iguais aos outros. Ele conseguia seguir as lições do Cristo com maestria, ajudar sem humilhar o outro nem receber a glória material dos seus atos. Casou com uma jovem que o amava e admirava. Ela lhe deu duas filhas, gêmeas. Eram duas belas garotas, de cabelos dourados, sedosos e perfumados que causava prazer em acariciá-los. Mas o destino foi cruel. Certo fim de semana quando a família voltava de um passeio, o motorista de uma carreta perdeu o controle do seu veículo e invadiu a outra faixa na contra-mão. Atingiu em cheio o carro dessa pessoa e num só momento ele viu a sua esposa e filhas partirem sem tempo de lhes dizer adeus. Só ele foi salvo do acidente, após tomar muito corticoide que alterou a sua anatomia, o deixou com um corpo mais pesado, mais atarracado, rechonchudo.  Sobreviveu, mas a vida perdeu todo o sentido para ele. Dos seus olhos não paravam de correr lágrimas. Após consulta por diversos especialistas descobriu-se que ele desenvolvera uma doença raríssima, a síndrome do Saco sem Fundo. É uma doença de natureza psicológica, quando a pessoa passa por um estresse emocional de fortíssima intensidade. Os mecanismos inconscientes acessam o saco lacrimal e as mínimas variações de emoções já fazem liberar as lágrimas sem nenhum controle, como se fosse um saco sem fundo. Não existe um tratamento farmacológico para o problema. A solução é que um outro evento de forte intensidade consiga retornar o controle perdido. Quando essa pessoa recebeu alta do hospital e voltou para casa, encontrou apenas o vazio. Decidiu que não iria viver uma vida desse tipo. Fez uma carta-testamento e deixou todos os seus bens para as instituições que cuidam de pessoas vítimas de acidente. Antes de fazer o ato final, percebeu que o sinal da secretária eletrônica avisava que tinha mensagem. Ele acionou o mecanismo e ouviu a voz da filha antes de ir para a viagem, dizendo que uma amiga que estudava no colégio reclamava da falta de um professor e que ele teria que tomar providência, não podia deixar sua amiga sem professor. Ele achou estranho porque na viagem sua filha não falou sobre isso. Interpretou que de alguma forma sua filha lhe estava tirando do caminho da morte para uma outra missão: a de ser professor. Talvez daí para a frente ele poderia perceber outros caminhos, poderia, quem sabe, preencher o enorme vazio que sentia. Essa pessoa me chamou, contou o suicídio que pretendia fazer e como mudou de opinião. Pediu para que eu assumisse a direção da escola, que guardasse o testamento para o usar se fosse necessário e que guardasse o segredo de tudo. Não queria que a compaixão de ninguém atrapalhasse a capacidade de aprendizagem, que as suas lágrimas continuassem sendo entendidas como consequência de uma doença física e não da sensibilidade emocional sem controle.
Vejam só minhas crianças, concluía a diretora, talvez agora voces já saibam quem é essa pessoa; talvez já saibam porque eu não a posso demitir nem trocar por outra; talvez nem saibam que muitos dos que o ironizam chamando de Flor, são mantidos na escola por sua generosidade. Vão, minhas queridas, vão terminar seus recreios... espero que o segredo que ele me confiou fique bem guardado com voces... vão, vão embora!
Saímos daquela sala atônitas. Não conseguíamos falar uma com a outra. Fomos em silêncio até o banco onde costumamos sentar no recreio. À distância vimos o professor Florentino, triste como sempre, sozinho, isolado, com o olhar perdido no horizonte. Nossas lágrimas agora caiam sem controle. Quando o professor voltou o olhar para nós fizemos um aceno para que ele se aproximasse. Parece que tudo havia mudado na nossa percepção. Não era mais uma anomalia gorducha que se aproximava pingando água dos olhos; era um gigante do amor, um anjo protetor que fora ferido. Ele sentou ao nosso lado e pedimos um pouco do seu colírio pois parece que nós tínhamos irritado de alguma forma nossos olhos. Enquanto ele tirava o frasco do seu bolso, deitamos nossas cabeças em seu colo, fizemos questão que ele acariciasse nossos cabelos enquanto pingava a gota em cada um de nossos olhos.
Não sei se foi porque nossos olhos estavam embaçados de lágrimas e de colírio, mas não percebemos mais correr as lágrimas nos olhos dele, mais parecia que eles haviam adquirido um brilho especial, um brilho de estrelas à luz do dia. Não sei se o professor Florentino percebeu, mas naquele dia ele nos deu a maior lição que receberíamos em toda nossa vida, uma lição que marcou para sempre a nossa mente e principalmente o nosso coração.

Sióstio de Lapa
Enviado por Sióstio de Lapa em 25/04/2012
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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr