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O SEMEADOR FRACASSADO
Caminhava por sobre a ponte que liga as praias de minha cidade. O sol já caminhava para o ocaso e na sua descida para o horizonte, pintava todo o azul do céu à minha esquerda de cores carmesins. Parei no centro mais elevado da ponte e fitei aquele quadro da Natureza que parecia pintado para expressar também a tristeza que ia em minha alma. Pensei em Deus, em fazer uma oração silenciosa, em pedir a Ele perdão por minha incompetência na vida. Eu sei que Ele nos dá os dons para que possamos viver com eficiência e que assim possamos reproduzir um por cem, por mil, enfim quanto mais, melhor! Ele me deu o dom de amar e tentei aprender o máximo que consegui ao longo da vida. Mas fui incompetente em plantar a semente desse amor nos corações que se aproximaram de mim. Amei cada uma das mulheres de minha vida de forma ampla, total, incondicional... mas jamais tive um retorno de igual qualidade e intensidade. Pelo contrário, o amor que eu doava recebia de volta a tendência de me aprisionar, de cercear a minha liberdade e a mais ninguém devotar o amor que não era só meu, e sim um empréstimo de Deus. Como eu poderia reproduzir generosamente esse empréstimo se ficasse preso a uma só pessoa? Tentei tantas vezes!... quando elas percebiam meu esforço de continuar a semear o amor em outros corações, apesar de toda a contenção que procuravam fazer, me expulsavam revoltadas, com o ódio a explodir em seus corações.
Enquanto parado na ponte eu fazia essas reflexões, sentia o coração apertado; o sol escondido por trás das últimas nuvens do entardecer, não mais clareava as águas revoltas do rio que corria abaixo de mim. Minha mente pesarosa continuava com suas reminiscências...
Sabia que eu seria cobrado por Deus no tempo oportuno, deveria querer saber o que fiz com o dom do Amor que Ele me emprestou. Sei que não o guardei debaixo da terra, não fui mercenário com ele, não fui sovina... pelo contrário, tentei o semear em todas as direções, em cada coração feminino, principalmente, pois também aprendi que era o coração mais afetuoso. Mas devo ter sido displicente com alguma lição básica. O amor que eu plantava em cada coração nunca florescia com a qualidade divina que em mim existia. Agora sou atormentado com o ódio das pessoas a quem tanto amor investi. Também aprendi, nas lições que absorvi, que o amor é eterno, que eu sempre serei responsável pelos corações que eu semeei... que devo suportar toda a carga de ódio que se volta agora contra mim, que deverei rezar ao Pai não por mim, mas por todas aquelas que se sentem prejudicadas; que elas encontrem o caminho do perdão para esse amante incompetente, que o ódio dos seus corações não seja a fornalha a destruir as suas vidas, pois assim sendo a minha também será destruída; minha consciência não suportará ver tanto sofrimento e devastação nos corações onde eu pensava semear apenas amor.
Percebi que, do meu corpo curvado sobre o parapeito da ponte, minhas lágrimas caiam de par em par e pareciam fermentar a corrente preguiçosa do rio. Parecia que o marulhar das águas eram murmúrios lamentosos das minhas amadas, que acusavam a minha incompetência, que exigiam, meu sangue, meu coração, a minha vida.
Olhei mais uma vez para o horizonte e sol havia se escondido. A escuridão lentamente tomava conta do infinito e deixava à descoberto pequenas estrelas que minha lágrimas não deixavam distinguir.
A solidão invadiu a minha alma e trouxe consigo o sentimento de culpa. O corpo alvo das andorinhas a voar ao longe ao redor do sol foi substituído pelas manchas escuras dos morcegos a esvoaçar ao meu redor. Senti que o Criador havia me abandonado, nem os seus dons Ele queria vir cobrar. A morte seria realmente a justa paga do meu fracasso. Subi no parapeito da ponte e fiquei sem a proteção do concreto. O vento frio soprava nos meus cabelos e esfriava o meu corpo no nível do frio que ia em meu coração. Fechei os olhos para o mergulho sem testemunhas nas águas agora escurecidas do rio preguiçoso que iria agora me acolher em seu seio sisudo... deixei o corpo pender e sentir pela última vez a natureza que um dia me criou.
Esperava sentir o choque fatal com a água que iria me levar a vida, com o aval da força da gravidade. Mas por incrível que pudesse parecer o choque não acontecia e parecia que a força da gravidade estava invertida Ao invés de cair vertiginosamente, meu corpo subia atraído por uma intensa luz, que brilhava mais do que o sol, mas que não queimava como ele. Parecia que o meu corpo de diluía naquela luz e uma voz sem palavra ecoava na minha mente sem cérebro:
Filho, para onde vais nessa trilha? Por que estás a ver somente o lado negro da natureza? Por que queres partir antes de prestar contas comigo? Por que estás com vergonha do amor que semeastes? Por acaso não era o mesmo amor que depositei em confiança no seu coração? Tu não fizestes tão boa semeadura ao redor da tua vida? Por que te culpas pelos terrenos, pelo corações que cultivastes não ter dado amor da mesma qualidade? Por acaso exigi de você as transformações dos corações? Cada pessoa não tem a responsabilidade dos sentimentos do seu próprio coração? Queres ter a responsabilidade, que nem mesmo Eu posso ter, de transmutar os corações? Queres anular o que de mais nobre eu dei a cada ser humano, o livre arbítrio? Você não percebe que implantou a nobreza do amor em cada coração? Que mesmo não sendo bem aproveitado no momento, mas com o fermento do tempo os bons frutos irão surgir? Será que não tens a firmeza do semeador em enfrentar as tempestades de raiva, de ódio, de intolerância; o potencial que o mal tempo tem de ameaçar a semeadura? Volta e continua tua tarefa, antes que Eu me arrependa do orgulho que até agora eu tenho de você!    
Acordei com o sol no meu rosto. Lembrava do sonho, da luz brilhante na qual eu me dissolvia. Entendi que foi devido o sol estar brilhando sobre mim e que eu já derretia de calor e de suor. Mas estranho, o meu rosto estava molhado, não de suor e sim de lágrimas e na minha cabeça parecia que tinha um monte de interrogações flutuando em todas as direções e que tinham uma essência tão divina que me forçou a sentar na cama e elevar ao Pai uma prece de agradecimento.
Sióstio de Lapa
Enviado por Sióstio de Lapa em 11/07/2012
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