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A CARTA DA MINHA FILHA
Oi, mano! Desculpa o susto que estou te dando escrevendo assim... de surpresa... pela primeira vez! É que meu coração pediu tanto!... Sei que para falar essas coisas ainda somos muito jovens, você 18 e eu 16 anos... mas não importa, vou falar assim mesmo e deixar sair o que está preso em meu coração e que me faz chorar tantas vezes.
Primeiro, é com relação ao meu pai, nosso pai. Sei que você está com muita raiva dele, fala com ele só o necessário, não recebe seus presentes, não aceita seus convites para sair, conversar, tomar um sorvete, ir a um restaurante... Tudo isso desde que sua mãe o expulsou de casa com o seu apoio. E por que tudo isso? Porque no dia reservado para a família festejar sua aprovação no vestibular, ele preferiu não participar e ir se encontrar comigo, pois era o dia da semana que regularmente ele fazia isso. Também achei exagerado da parte dele ser feito isso, devia ter ficado com vocês, eu entenderia como tantas vezes entendi quando ficava sozinha no Natal e Ano Novo enquanto ele estava com vocês e eu não podia estar junto. Disse assim para ele, mas não se mostrou arrependido. Ele disse para mim que havia se sentido mal desde o momento que foi anunciado o resultado de sua aprovação. Todos podiam telefonar para você e o cumprimentar, menos eu! Talvez, de forma ingênua, eu tenha provocado esse comportamento aparentemente radical do nosso pai, que sempre foi uma pessoa conciliadora. Eu havia pedido a ele para me informar do resultado do vestibular, pois eu estava querendo saber, eu estava torcendo por você! Ele havia me prometido isso, mas no entanto, o resultado saiu quando ele estava com você, na casa de sua mãe, e ele havia sido proibido de qualquer comunicação comigo daquela casa. Ele se sentiu pior do que um “prisioneiro” que pode fazer ligação de onde está. Falou dessa forma! Disse que comemorou com vocês no momento, mas os olhos não tinham o brilho da alegria. Ele sentia por um lado a vitória de um filho e do outro a confirmação de existia para aquelas pessoas uma filha bastarda, que não merecia consideração. Isso ele não poderia aceitar! Foi assim que ele falou comigo, com toda energia, eu que acabava de criticá-lo porque ele devia ter ficado com você! Eu senti um orgulho tremendo daquele pai que era o meu, que não fazia diferenciação de mim para qualquer outro irmão, que eram aceitos socialmente porque viviam dentro de uma relação conjugal e eu não. Um pai que não temeu com essa atitude de justiça perder todo o seu projeto de vida, de viver até o fim com uma pessoa que ele amava, como era o caso de sua mãe. E isso de fato aconteceu. Sua mãe o expulsou por esse motivo, sem nenhuma consideração, tratado como um marginal, de não poder entrar mais na sua casa, nem para pegar os seus livros, CDs, DVDs, afagar o cachorro com quem vocês passeavam ou mesmo lhe dar um abraço na acolhida de um lar e não em estacionamentos ou parques públicos como acontece. Também achei essa atitude muito exagerada!
Mas não quero entrar nas razões da sua mãe, como também evito entrar nas razões da minha mãe. Quero me manter centrada nas nossas razões enquanto filhos do mesmo pai e com mães diferentes. Mas também é diferente o nosso pai, quando comparado com os outros pais. Mas é essa diferença que ele tem dos outros pais que proporcionou a nossa existência. Lembre que foi o amor desenvolvido por ele com sua mãe e a minha, fora do contexto cultural, das leis civis do casamento, que permitiu a nossa existência. Então, esse é um ponto, mano, que jamais devemos esquecer, principalmente eu e você: DEVEMOS A NOSSA EXISTÊNCIA À ANOMALIA QUE NOSSO PAI POSSUI.
Mas vou voltar aos nossos sentimentos de filhos, vou fazer a crítica que meu coração pede que eu faça. O comportamento que ele teve comigo jamais deveria ser motivo para essa raiva de sua parte, afinal foi com você que ele passou a maior parte da vida dele: 18 anos! Nenhum dos filhos teve esse privilégio que você teve, nem os primeiros 3 filhos, pois a mãe deles o expulsou quando eles estavam na faixados10 anos. Agora que ele foi expulso mais uma vez, de uma casa que ele não queria sair, foi que eu tive a chance de morar com ele, depois de 13 anos de minha vida. Então, mano, analise bem, de todos os filhos de nosso pai não sou eu a mais carente de sua companhia? E digo mais, talvez tenha sido a mão de Deus que fez essa compensação para comigo. Talvez tenha sido as preces que eu tanto fiz a Ele, para ter a chance de um dia poder morar com o meu pai. Só não pensei que Deus fosse fazer dessa forma e que você fosse agir dessa maneira.
Olhe, mano, você pode achar ruim agora essa sensação de abandono que vocês mesmo provocaram, você e sua mãe. Mas você pensou alguma vez na sensação de abandono que eu tive durante toda minha vida? Desde o meu nascimento quando minha mãe foi sozinha para a maternidade e de eu ter nascido sem ver também os olhos do meu pai? De não ter ele perto de mim para ajudar a trocar as fraldas, ver a temperatura, dar o mingau, me acalentar no braço ou brincar na grama como fazia com você? Você imaginou o que eu sentia quando ia para a escola a pé e depois ficava a perguntar por que todo pai vinha pegar o filho e o meu não? Você imagina o que eu sentia quando eu percebia minha mãe constrangida tentava me matricular e a direção da escola perguntava pelo pai? Nos eventos, nas festas que eu participava, a quem você imagina que eu procurava com ansiedade ver na plateia? Não, meu irmão, você não sabe o que é abandono tanto quanto eu! Infelizmente são nossas mães que impedem que convivamos juntos e em harmonia, querem até impedir que nosso pai continue a gerar mais irmãos quando assim for permitido por Deus.
Confesso, meu irmão, a alegria que sinto em morar agora com meu pai, mas também eu lhe entendo agora com mais clareza o que você sentia quando morava  com ele. Saiba que ele continua a amar como sempre amou, que continua a sair de casa, e me deixa sozinha, para encontrar com as namoradas como fazia quando estava com você. Nesses momentos eu sinto frustração e até raiva, de não ver meu pai voltar para casa e as vezes nem avisa, pois sabe que no momento que avisa o sofrimento começa a acontecer. Sou que as vezes telefono para saber o motivo da demora e quando insisto em saber o porque, ele não costuma mentir, diz que está com uma namorada. Sinto tanta raiva! Chego até a incorporar os sentimentos negativos da minha mãe nesse momento, pois são mais fortes que os meus. Só depois de algum tempo é que volto a ter o domínio da minha consciência e digo para mim mesmo no silêncio do meu coração machucado: “Isso que acontece é devido a anomalia que ele tem e que possibilitou a minha existência”
Era isso, mano, que meu coração queria dizer ao seu e lembrar uma frase que nosso pai sempre estar a repetir: “devemos ressaltar o lado positivo das pessoas, que devemos escrever os benefícios no mármore para que fique gravado no coração, enquanto as coisas ruins devem ser escritas na areia para que o vento do esquecimento logo as destruam.”
Estou tentando seguir este conselho, tenho que conseguir muito mármore, pois a cada dia ele me surpreende e me enche de benefícios: pode ser uma blusa com um desenho maluco na frente; um CD que para ele é mais barulho que melodia; um porquinho pintado para guardar minhas moedas; é de ficar de cabeça para baixo num parque de diversão para me fazer companhia; é ficar ao meu lado no dentista como um cão de guarda para me dar segurança; é de chegar tarde numa reunião para esperar eu sair de uma reunião com minhas amigas; de deixar de fazer um passeio com os irmãos ou um encontro com as namoradas para me levar e trazer de uma prova; é me levar para uma praia, tomar banho ao luar e pular sete ondas seguidas... Enfim, vou precisar de muito mármore. Mas tenho que ter por perto de mim a areia, pois sei que é humano e pode errar, e não quero nesse momento que minhas lágrimas de sofrimento e tristeza impeçam de ver onde eu devo escrever.
Sei que se você fizer assim e aplicar no passado vai precisar de muito mármore, com certeza, mas não se preocupe. Posso lhe arranjar alguns do estoque que eu já fiz. (risos).
É isso aí, mano, um beijinho para ti.
Sinto o coração mais aliviado.
Sióstio de Lapa
Enviado por Sióstio de Lapa em 09/12/2012
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