Ouvi essa música de Raul Seixas pela enésima vez, sempre me identifiquei com ela, entrava em sintonia com o pensamento do autor. Mas hoje senti a vontade de abordá-la e abrir assim um trabalho de identificação do Amor a partir das letras da Música Popular Brasileira. Então nada mais coerente do que começar pela letra de “A maçã”, já que tenho tão perfeita identificação com ela. Irei colocando a letra em negrito e logo abaixo a minha interpretação.
Se esse amor
Ficar entre nós dois
Vai ser tão pobre amor
Vai se gastar...
O autor abre a letra com uma premonição do que irá se tornar o amor se ele ficar restrito a apenas duas pessoas, que ele vai ser muito pobre e que vai se gastar. Intuitivamente ele percebe que o amor deve ter uma dimensão maior, que ele pode envolver muitas pessoas e que assim prosperará.
Se eu te amo e tu me amas
Um amor a dois profana
O amor de todos os mortais
Ele coloca a condição de um amor correspondido, mas que se permanecer na exclusividade apenas dos dois amantes, irá profanar o divino que existe no amor. Sem citar diretamente, o cantor introduz de forma sutil a importância majoritária e universal do Amor Incondicional: “o amor de todos os mortais.”
Porque quem gosta de maçã
Irá gostar de todas
Porque todas são iguais...
Fez um paralelismo da maçã com a pessoa, do desejo por uma fruta, com o desejo de uma mulher. Claro, da mesma forma que não existem duas maçãs iguais, não existem duas mulheres iguais. O que ele quer dizer é que todas as maçãs tem a mesma essência de saciar a fome, e todas as mulheres tem a mesma essência de saciar a libido. Então, se eu gosto de uma mulher por me saciar a libido, irei gostar de todas, pois todas tem esse mesmo potencial. Isso em termos genéricos, pois sabemos que existem as compatibilidades e incompatibilidades pessoais, onde pode haver uma facilidade maior na aproximação das duas pessoas capazes de interagir na realização desse prazer.
Se eu te amo e tu me amas
E outro vem quando tu chamas
Como poderei te condenar
Esse trecho quebra a exclusividade do amor romântico. O outro que minha companheira pode chamar quando sentir nela a chama dessa libido, tem toda a liberdade de se manifestar, pois também posso sentir o mesmo e quero ter a mesma liberdade de expressar o meu afeto junto com essa outra pessoa. Por questão de justiça e coerência, não há como eu possa condenar tal atitude nela.
Infinita tua beleza
Como podes ficar presa
Que nem santa num altar...
Mais uma vez o cantor usa de simbolismo, dessa vez da beleza para o amor. Sente como infinita a beleza da sua companheira, e esse amor não pode ficar preso, mesmo que seja adorado como um santo no altar. Esta atitude de prender é que irá gerar a transformação do amor romântico em sentimentos negativos, como raiva, ódio, agressão, até o máximo do assassinato. Se esse amor romântico passa a ter as características do amor incondicional, então se garante a liberdade e a satisfação de sentir o amor fluindo.
Quando eu te escolhi
Para morar junto comigo
Eu quis ser tua alma
Ter seu corpo, tudo enfim
Mas compreendi
Que além de dois existem mais...
Confessa a tendência que existe do homem possuir a mulher em todas as condições, torná-la um simples objeto, do ponto sexual até o administrativo na sociedade e no lar. Ele consegue superar essa tendência, consegue compreender que além deles dois existem muitas mais pessoas, mais relações; que o mundo não é uma ilha.
Amor só dura em liberdade
O ciúme é só vaidade
Sofro, mas eu vou te libertar
Caso todos soubessem a importância desse momento na consciência do cantor, iriam verificar que seria mais espetacular do que o “grito do Ipiranga”, pois significa a liberdade da prisão que provoca o amor romântico, da exclusividade do amor que deveria ser amplo, do ciúme como um sentimento negativo, e não como prova de amor. A associação do amor com liberdade é perfeita, e isso só pode ser alcançada com o amor incondicional. O amor romântico leva sempre à exclusividade e, portanto, necessariamente a algum tipo de prisão. Reconhece que fazer isso, promover essa liberdade em favor do outro não é nada fácil, vai de encontro aos princípios machistas que preenchem a mente de todo homem. Mas ele está decidido, vai sofrer, mas vai libertar a amada, pois “não quer vê-la presa como santa num altar.”
O que é que eu quero
Se eu te privo
Do que eu mais venero
Que é a beleza de deitar...
Um exemplo magnífico de um ato de justiça. Se isso que ele tanto venera, ele proíbe na companheira, comete uma incoerência, uma ingratidão, tremenda injustiça. Faz uma pergunta que já sabe a resposta: se ele priva alguém de fazer o que ele tanto gosta, ele quer ser um tacanho ditador numa relação tão cheia de potencial divino.
Para uma pessoa como eu, que pretende desenvolver o Amor Incondicional em todas as relações, essa postura consciencial de Raul Seixas é perfeita. Mesmo que isso me torne um pária frente aos meus concidadãos, pessoas com as quais dividimos a mesma cultura, enfrentarei essa condição, pois sei que a cultura do amor romântico logo deteriora em exclusivismo que beneficia mais ao homem, e que pode transformar um sentimento positivo como o amor em emoções negativas como raiva, ódio e até assassinato.
Sióstio de Lapa
Enviado por Sióstio de Lapa em 20/04/2016