Esta, sim, é osso dos meus ossos
E carne da minha carne!
Ela será chamada mulher,
Porque do homem foi tirada.
(Gênesis 2,23)
Na Bíblia, em Gênesis 2,21-22, temos a informação da criação da primeira mulher, Eva: “Então o Senhor Deus fez o homem cair em profundo sono e, enquanto este dormia, tirou-lhe uma das costelas, fechando o lugar com carne. Com a costela que havia tirado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher e a levou até ele.”
Surgem a partir daí diversas interpretações com significado simbólico. Pedro Lombardo, que se tornou Bispo de Paris em 1159, escreveu um ou dois anos antes, em seu famoso sumário da doutrina cristã intitulado O Livro das Sentenças: “Eva não foi tirada dos pés de Adão para que fosse sua escrava, nem da cabeça para que governasse sobre ele. Deus tirou-a de seu lado para que ela fosse sua parceira.”
Matthew Henry ao escrever seu comentário bíblico em 1704, provavelmente deve ter se lembrado de Lombardo para afirmar que Eva “não foi feita a partir da cabeça de Adão para superá-lo, nem dos seus pés para ser esmagada por ele, mas de seu lado, para estar ao lado dele, em igualdade; sob seu braço para ser protegida, e perto do seu coração para ser amada.”
Surge daí a ideia de casamento que segundo os intérpretes da “palavra de Deus” une o homem à mulher de forma monogâmica, exclusivista. Prefiro deixar um pouco de lado as interpretações dos doutores, sacerdotes e demais profetas sobre a vontade de Deus, para voltar a origem dos fatos segundo o simbolismo da criação. Deus fez o homem sua imagem e semelhança e a partir dele fez a mulher para complementar a sua vida. A partir daí a mulher assume uma posição secundária na Natureza, comparada ao homem e dentro desse simbolismo. Mesmo que as interpretações dos sacerdotes e doutores da lei tentem trazer um equilíbrio a essa compreensão.
Do ponto de vista material, tudo está relacionado à origem da vida biológica e seus determinantes evolutivos, ligando os seres primordiais, unicelulares, aos seres sofisticados, pluricelulares, cujo protótipo mais evidente ao nível da consciência é a espécie Homo sapiens que representa o homem e a mulher. Nesse contexto não há a primazia do surgimento, da criação. Ambos tem o mesmo peso no surgimento dentro do plano da vida biológica, com suas atribuições prevalentes bem determinadas, o homem de proteção e provisão, a mulher de reprodução e cuidados.
Do ponto de vista espiritual a questão do gênero perde sentido. O espírito não necessita do acasalamento para se reproduzir, é criatura do próprio Deus, sem necessidade do sexo. Porém, é criado simples e ignorante, dotado de livre arbítrio e por isso deve por esforços próprios evoluir principalmente no campo moral, dos afetos e sentimentos, para se aproximar da Natureza de Deus com sua individualidade respeitada. Necessita da experiência carnal, encarnado assim no corpo biológico, submetido às leis da reprodução que viabiliza a vida dentro da matéria, para aprender a absorver e desenvolver a Lei do amor, como forma de respeitar os imperativos materiais e ao mesmo tempo obedecer aos imperativos do Criador (Natureza). Dessa forma o espírito precisa passar pela experiência tanto de homem quanto mulher nas suas diversas reencarnações ao longo de seu processo evolutivo.
Com esta perspectiva vou ao encontro do relacionamento com a mulher, sabendo do simbolismo da criação, da forma de evolução dos seres biológicos e das necessidades de nossos espíritos, tanto do meu espírito enquanto homem, quanto o espírito dela enquanto mulher, na atual fase de nossa experiência no campo material.
Assim, não posso pautar a minha vida por interpretações de outras pessoas, por mais sábias que sejam nos seus campos de conhecimento. Com a consciência amadurecida com informações acerca da verdade, devo sim, utilizar toda informação adicional para ir ajustando o meu pensamento a uma conduta mais apropriada para a minha evolução e daqueles que comigo caminham.
A consequência mais dramática dessa minha forma de pensar, foi desconsiderar a família nuclear assentada no amor exclusivo, para defender e praticar a família ampliada assentada no amor inclusivo. Isso vai de encontro as diversas formulações e legislações dentro e fora dos livros e doutrinas sagradas e que no atual estágio evolutivo prevalecem na comunidade. Considero a mulher como uma parceira fundamental e que devo encontrar dentro das diversas experiências dos encontros, aquelas que melhor sintonizarem com o meu pensamento e acreditem que a pratica do comportamento que defendo é fundamental tanto para a minha evolução como a delas.
Desde que pela primeira vez quebrei o bloqueio da família nuclear, norteado pela prática do amor exclusivo, e me envolvi afetivamente com outra pessoa, com amor e responsabilidade, foi criado um novo formato familiar: a família ampliada. A senha para a quebra da familiar nuclear e a criação da família ampliada, dessa forma, passa ser o envolvimento íntimos com outra pessoa tendo por base e a responsabilidade.
A dificuldade é que todos na comunidade têm seus comportamentos pautados pelos critérios da família nuclear, do amor exclusivo, mesmo que a maioria não os cumpra, que exista um alto índice de traição implícita e explícita,
Na família ampliada com base no amor inclusivo, não há espaço para traição. Os participantes estarão conscientes de que o amor deve fluir com liberdade e responsabilidade, que a qualquer momento um dos parceiros pode se envolver afetivamente com mais alguém, que isso não implica no abandono dos antigos parceiros em favorecimento dos novos.
Na minha trajetória de vida tenho colocado em prática esse pensamento. Tive diversos relacionamentos íntimos nessa base. O amor nos aproximava, mas a responsabilidade nos afastava, principalmente com respeito à opinião e decisão dos parceiros que estavam muito comprometidos com os valores da família nuclear/ amor exclusivo. Eu sofria o afastamento, mas permanecia com elas na consciência, como parte de minha família ampliada.
Nós que acreditamos em Deus e que procuramos viver sintonizados com Sua Vontade, temos a capacidade de ouvir a sua voz por diversos meios ao nosso redor, pode ser os livros, rádios, panfletos, alguma expressão da natureza, até mesmo dentro da nossa consciência. Este meio, o da voz de Deus na Consciência, eu acredito ser o mais forte. Mesmo que todos ao redor tentem desacreditar nisso, é a nossa consciência que tem que dar o veredicto final.
Eu penso assim, pois desde que interpretei a voz de Deus na minha consciência, sinalizando o caminho que eu teria que percorrer, com apoio em todas as formas de comunicação que Ele tem comigo, nunca mais fiquei confuso com a minha destinação, qual o caminho a seguir. Sei hoje que Ele espera de mim o esclarecimento da prática do verdadeiro amor dentro das relações humanas, principalmente as relações de gênero que formam a base da convivência e da reprodução. Toda dificuldade que surge no meu caminho não vou interpretar como a mudança de Deus para os planos iniciais que Ele tinha para mim, e sim que os obstáculos fazem parte de qualquer caminho e que cabe a mim desobstruí-los e seguir avante. Claro que estou sempre com a bússola que Jesus nos ensinou, de “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a mim mesmo”. Se eu deixo de amar qualquer expressão da Natureza que representa o próprio Deus, entro no caminho errado; se deixo de amar, de respeitar, de proteger ao meu próximo como si a mim eu fizesse isso, também estarei indo no caminho errado.
Todos nós, filhos do mesmo Pai, temos condições de fazer isso. Procurar um lugar sem ninguém por perto, no silêncio do quarto de dormir, de uma igreja, na beira do mar, no meio do campo; sob as estrelas ou sob a lua, sob o sol do amanhecer ou no lusco-fusco do crepúsculo, procurar saber o que o Pai deseja de nossa vida. No momento que isso ficar esclarecido em nossa mente, não podemos deixar que a opinião de ninguém possa colocar em dúvida aquilo que Deus já disse para nós. Se tal acontece, não temos moral para encontrar novamente com Deus e com Ele fazer algum acordo, se a primeira pessoa que der a sua opinião colocar em dúvida o acordo divino.
Geralmente um mesmo fato pode gerar interpretações diferentes. A Bíblia dá um bom exemplo. Calebe e Josué fizeram parte dos doze espiões que Moisés mandara à terra de Canaã depois da travessia do Mar Vermelho para verificar as condições de entrar nessa terra. Dez espiões deram um relatório pessimista sobre a conquista de Canaã, dizendo que havia cidades fortificadas, que os habitantes eram muito poderosos e que existiam gigantes ali. Calebe e Josué viram as mesmas coisas, mas deram um relatório animador. O problema é que o povo ouviu os dez espiões desanimados e por seguir uma interpretação desanimadora tiveram que peregrinar pelo deserto por quarenta anos até que a geração adulta morresse no deserto, com exceção de Calebe e Josué.
Tenho um problema parecido com esse relacionado à leitura da Bíblia e aos seus ensinamentos. Faço uma interpretação otimista dos ensinamentos de Jesus, aceito que o Amor é a maior força do Universo, que se confunde com o próprio Deus e que a sua correta aplicação é o desenvolvimento do Amor Incondicional, à Deus em primeiro lugar e ao próximo como a mim mesmo. Fazendo assim dentro dos diversos relacionamentos que faço na comunidade, desenvolvo uma forma de amar inclusiva que viabiliza a ampliação da família em direção à Família Universal preconizada pelo Mestre e dessa forma estabeleceremos o Reino de Deus.
Acontece que, diferente de Josué que tinha um companheiro que interpretava como ele a situação que viam, eu não encontro ninguém que interprete como eu a situação que aprendo nos livros sagrados. Por isso sou criticado por todos, que me acusam de herege, tarado, demoníaco. Quando o perfume do amor que exalo atinge a quem se aproxima de mim, pode ser gerada uma boa empatia, amor, ou mesmo paixão e a pessoa mesmo não aceitando completamente a minha interpretação, a respeita e procura até conviver intimamente comigo. Porém o mundo não as perdoa também. Elas recebem críticas de todos os lados, inclusive das pessoas que deviam por natureza as amar em profundidade e incondicionalidade, os parentes, principalmente pai e mãe. Essas pessoas sofrem, talvez, muito mais do que eu. Elas não têm a completa interpretação e convicção que tenho das lições e a força de aplicá-las no entorno. Elas que poderiam e deveriam ser parceiras, solidárias, fraternas, para enfrentar a força da interpretação exclusivista e egoísta que prevalece na comunidade, deixam que se desenvolvam nelas o mesmo sentimento de egoísmo, de isolacionismo, que prevalece ao lado do amor condicional dos que interpretam a Bíblia como uma perene forma de manter os relacionamentos estanques, exclusivistas.
Espero ter a mesma fé e perseverança de Josué, não importando os obstáculos ou dificuldades por querer realizar na prática a interpretação que Deus colocou na minha consciência de sua Lei: amar de forma incondicional!
Parece que a história sempre está a se repetir com relação aos valores egoístas se sobrepondo aos valores altruístas. Escândalos de todo o tipo enchem os jornais de notícias em todo o mundo. Pessoas que antes defendiam em praça pública a justiça social, a solidariedade, a honestidade de princípios, quando assumem o poder passam a assumir atos ilícitos, desonestos... mesmo sabendo que existem muitas pessoas que mantém um comportamento relo do começo ao fim da vida, parece que são a exceção no quadro geral dos relacionamentos. A Bíblia também já disse que “nos últimos dias o amor de muitos esfriaria”. (Mt 24,12).
Prefiro acreditar que o próprio Deus nos enviou uma esperança no mundo, mandou o seu filho mais adiantado até nós para que fosse ensinado a Lei do Amor e assim eu possa sair desse estágio animalesco. Reconheço nos ensinos de Jesus todo esse potencial de libertação, só devo me esforçar para adquirir a transformação. Sei que não é fácil isso, mas já tenho um caminho, reconhecer como a verdade para assumir a vida que Deus deseja para mim. É preciso firmeza para trilhar esse caminho da verdade. A tendência é que eu me una à turba e logo seja esquecido que o amor inclusivo, o amor incondicional, é o que de mais importante eu tenho para construir a minha vida. A turma ligada ao materialismo, ao amor exclusivo pode até ousar ironizar a minha decisão, mas estarei sempre firme com minha postura de amante do amor incondicional e peço a Deus que me dê forças para que eu me livre da fácil hipocrisia e junto da turba renegar o que defendo, agir espalhando o ódio e a maledicência, enquanto minha língua defende os interesses do Pai!