Mais uma vez a Caridade é colocada em cheque na minha consciência. Já estava bem adiantado, já soltava minhas pratinhas entre os pedintes e trabalhadores anômalos de forma mais natural, sem tanta resistência. Mas uma outra situação que surgiu, apesar de ter liberado a pratinha, ficou a martelar sobre a forma de caridade que eu estava a praticar. Era uma jovem de 15 a 18 anos que esmolava no cruzamento com uma criança de seis anos aproximadamente, sonolenta e escanchada em seu quadril. Depois que liberei a pratinha fiquei a pensar nas conversas que ouvi sobre mulheres que alugam crianças para sensibilizar o coração de quem estar ao seu alcance. Ou então a outra possibilidade ainda mais perversa de ter um espertalhão por trás que explora tanto a mulher quanto a criança. Imaginei que se essa hipótese fosse verdade, eu não estaria exercendo a caridade e sim alimentando a crueldade. Mas como poderia eu descartar os aspectos da crueldade e deixar apenas a necessidade da caridade? Não tinha como eu fazer essa triagem em curto espaço de tempo e na observação apenas da ponta do iceberg. Essa deveria ser uma tarefa do estado, instituição que criamos para decidir com objetividade as diversas demandas da coletividade. Percebi que eu não podia ser tão extremista no ato de ser caridoso, espalhando caridade ao redor sem exercer a crítica que nos protege da crueldade. Mais uma vez chega o dilema na consciência: pelo menos uma dessas pessoas pode estar sob o amparo da caridade, que pede por necessidade. Vou deixar ainda as minhas ações sintonizadas com a caridade e procurar perceber sempre do que o outro tem falta, mas quando alguma coisa soar com força dentro da consciência, eu me permitirei recusar a praticar uma caridade que pode estar beneficiando a crueldade. Sei que tudo isso é ações periféricas que não tem chance de alterar a essência do indivíduo. A profundidade do que faço está sempre ancorada na Lei de Deus. Permitirei nessas ocasiões de conflito, que a voz de Deus em minha consciência tenha mais presença.
Pai, tenho tanta coisa para pedir e tão poucas palavras para m expressar. Então verei se pelo menos consigo pedir desculpas por minhas falhas, cognitivas, emocionais, sei lá... Sei que é importante a oração, que devemos agradecer e pedir ajuda entre tantos outros motivos que os filhos tem quando se dirigem ao Pai. Por que então, eu, que tanto sei da Sua existência e da Sua importância em nossas vidas, tenho tanta dificuldade? Por que as palavras que deveriam expressar o que preciso, ou pelo menos manter um contato com o Pai não são produzidas em minha cognição? Então eu peço: Pai, desculpa por minhas falhas, por não me aproximar de Ti, de não poder dirigir a Ti minha palavra. Sei que Tu lês a minha alma e sabes que nada disso é devido a soberba, ao orgulho, a vaidade, a prepotência de me considerar autossuficiente frente as exigências da Natureza. Sei que Tu sabes que todo esse meu isolamento de Ti é causado por minhas próprias deficiências que nem o meu intelecto consegue alcançar o mecanismo dessas falhas. Portanto eu peço, Pai, concedei-me um melhor raciocínio para que eu consiga falar Contigo. Dá-me forças para que eu consiga vencer a timidez, as barreiras que tenho que superar. Também sei que Vós não irá considerar esta oração que faço aqui como uma forma de vaidade, e sim uma forma de humildade que é assim que me sinto, expondo as minhas fragilidades de forma pública. Também quero deixar bem claro, Pai, que peço desculpas pelas falhas que cometi com outras pessoas, que confiaram em mim e que por motivo de não saber comunicar devidamente o que vai em meus pensamentos, terminei por gerar falsas expectativas, que ao não se cumprir terminou por causar tanto sofrimento ao meu lado. Agora mesmo, Pai, sei que muitas pessoas estão sofrendo por causa do meu comportamento anômalo nos relacionamentos pessoais, principalmente nos relacionamentos afetivos, minha forma de pensar e agir, que penso estar cumprindo com firmeza todos os principais mandamentos de Vossa Lei. Caso eu esteja errado, fazei com que entre na minha consciência todos os detalhes do erro para que assim eu possa corrigir o mal que porventura cometi ao meu redor.
Jesus recebeu a visita de seus parentes quando ensinava a uma multidão. Naquela época e ainda hoje, a família era considerada o núcleo básico da sociedade. A sua perpetuação era e ainda é considerada como um dever e portanto o casal que não conseguia ter filhos viviam com desconforto existencial. Tal era a autoridade que a família exercia na comunidade, que os ouvintes de Jesus não se importaram de interromper seu discurso para que ele pudesse atender os seus parentes. Mas ele tinha algo a ensinar que ainda era mais importante.
Jesus tinha duas famílias, aquela em que nasceu e foi criado e outra, formada por todos aqueles que conheciam e praticavam a vontade de Deus. De modo algum Cristo menosprezou seus parentes ou negou o valor da família física, mas mostrou que há laços ainda mais profundos que os de sangue. Todos somos filhos de Deus, não como escapar dessa condição, quer acreditemos ou não em sua existência. Para o Pai todos somos seus filhos, Ele reconhece sua criação assim como qualquer criador medíocre aqui na terra reconhece o que produz. A pessoa pode ser um aborígene, um selvagem, um cientista, um sacerdote, todos são considerados pelo Pai como seus filhos, assim como Ele reconhece todas as obras da natureza de Sua autoria. O problema reside em nós nos considerarmos como seus filhos, saber de Sua existência ao longo da eternidade e que nossa vontade deve estar sintonizada com a vontade dEle. Essa condição de reconhecer e praticar aquilo que Deus quer é que vai nos dar o ingresso nessa família espiritual.
Nossa família biológica é essencial e deve ser tratada com todo amor, mas fazer parte da família de Deus é ainda mais importante, pois ela durará para sempre. Tenho me esforçado, desde que tive a compreensão das famílias que Jesus ensinou, em priorizar a família Universal sem deixar de amar e cuidar da família biológica em que estou inserido. Procuro colocar em prática todo esse ensinamento, mesmo que o ato sexual intimamente associado à família biológica pelo fato dele ser o responsável pela reprodução dos corpos e assim pela continuidade da vida no campo material, seja motivo de críticas externas e de extremo cuidado da minha parte. Compreendo que devo viver inserido na família universal como prioridade existencial, mas que o ato sexual pode surgir no contexto dos relacionamentos e na concordância afetiva dos interessados, sem que seja gerado sentimentos de posse, de exclusividade, por nenhuma das partes.
As vezes fico abalado com o veneno das palavras ditas por certas pessoas, pessoas que amo profundamente. Mesmo que eu não demonstre a dor que me vai na alma, o mal juízo que é feito sobre o meu comportamento apesar de toda a transparência que procuro ter, da mesma forma que me exponho de forma tão íntima neste blog, deixa o meu coração dolorido. Nunca procurei enganar ninguém, sempre disse da vocação que me chegou na consciência, que não podia mais amar ninguém com exclusividade, então porque tanta revolta quando eu faço aquilo que me dispus frente a Deus e ao mundo? Por que formam um juízo falso e até negam o meu amor, já que o meu principal foco na vida é justamente o amor? Só porque eu não entreguei esse meu amor com exclusividade a alguém? Mas considero o juízo de Deus o mais importante. Este sim, é verdadeiro. O juízo dos homens pode ser falso, porque estes muitas vezes se deixam levar pela inveja, pelo orgulho ou pelo ciúme. Eu tenho a consciência em paz, levanto a cabeça para os céus e fito o olhar de Deus no firmamento e não vejo nEle nenhuma condenação, pelo contrário, vejo a Sua satisfação em perceber que os meus frutos são saudáveis, nutritivos e suculentos. Isso me faz seguir em frente. Um dia a verdade e a justiça triunfarão e todos que hoje estão equivocados terão oportunidade de corrigir seus falsos juízos, sentimentos e comportamentos, inclusive eu.
Dom Frei Severiano Clasen, OFM (Ordem dos Frades Menores) dizia que é nobre termos consciência que todos somos chamados para algo na vida. Vocação é um chamado de Deus. Deus tem uma missão para cada um de nós. Eu me senti compelido a responder com a minha própria vida o que Deus espera de mim. Não foi o impulso para viver em algum mosteiro, de fazer votos de castidade, obediência e pobreza. Mas senti que Deus me chamava para fazer algo de bom, com o meu modo de ser, com minhas atitudes, com carinho e com entusiasmo. Mesmo que aparentemente seja um comportamento fora da Lei de Deus, pois vai de encontro a formação da família nuclear que entendemos enquanto sociedade, ser a base da comunidade cristã. Mas assim como Francisco foi chamado para reformar a igreja suntuosa e mostrar o valor da humildade e da pobreza, assim eu sinto que fui chamado para construir uma alternativa de relacionamento onde o amor inclusivo fosse considerado com maior respeito e hierarquia já que se encontra mais próximo do amor incondicional, do amor universal. Responder a esse chamado significa me tornar estranho aos olhos do mundo material onde o egoísmo impera tendo como base o amor exclusivo. Significa que serei tratado com rispidez, raiva, até ódio, quando eu não dedicar a exclusividade do meu amor para alguém que assim espera que aconteça. Apesar disso tudo, também significa que terei de ser mais solidário até mesmo com os adversários, ter mais compaixão e ser honesto e transparente nas minhas ações. Assumir essa vocação é dedicar a minha própria vida à vida dos meus semelhantes, do meu próximo, independente dos laços de amizade ou de sangue; é ter clareza da vontade de Deus, de ficar sempre atento ao que Ele deseja que eu faça na família, na igreja e na sociedade, para ser o Seu instrumento voluntário na formação do Seu Reino de amor, justiça e solidariedade.