Hoje é quarta-feira de cinzas, é o início da Quaresma e da Campanha da Fraternidade, tempo de penitência e conversão. É muita coisa para quem tenta seguir a vontade de Deus com disciplina.
São os 40 dias que Jesus passou no deserto. São 40 dias que podemos fortalecer, assim como Jesus, nosso compromisso com Deus, na luta contra as diversas formas de tentação, fazer as penitências pelos erros que cometemos, inconscientes ou não.
Tenho muito que corrigir no meu comportamento e talvez também nos pensamentos. Até o momento eu penso que estou sintonizado com a vontade de Deus, sinto no coração que o caminho que Ele me oferece já está escrito na minha consciência. Mas percebo também muitas falhas, principalmente nos relacionamentos íntimos cuja abertura se faz com o amor romântico que é tão contrário ao amor incondicional. Percebo que devo aproveitar esta Quaresma e me deslocar para a dimensão desértica da minha alma, longe de tudo e de todos, dentro de um contexto imaginativo, já que não posso fazer isso na realidade material como Jesus fez.
Devo avaliar com isenção todos os meus passos, ver o que está atrapalhando o caminhar mais rápido, os erros que cometi e como fazer a conversão do que é mal para o plano da bondade. Sei que todos esses erros que atrapalham a missão dada pelo Pai, estão dentro do meu próprio coração, a carga de egoísmo que herdamos da nossa condição animal. Sei que tenho que fazer esse teste íntimo, promover uma limpeza da alma com mais eficácia e ter coragem de apresentar com todo realismo às minhas companheiras, mesmo que isso seja motivo de sofrimento para todos. Afinal, Jesus não passou esses 40 dias no deserto como uma forma de lazer. Também Ele sofreu pressões de todos os lados, porém como o seu coração estava limpo, ele não titubeou em nenhum momento. Sei que eu não tenho essa competência do Mestre, sei que vou encontrar muitas falhas, mas a vontade de vencer todos esses obstáculos é o maior trunfo que levo para essa luta, além, é claro, da proteção de Deus e da compreensão de meus companheiros e companheiras de caminhada.
Jesus sempre usava essa imagem do pastor e suas ovelhas para exemplificar o Seu cuidado com as pessoas as quais considerava como ovelhas. Tinha a missão precípua de cuidar delas, que viviam no mundo desgarradas sem um objetivo de cunho definitivo frente a eternidade da vida. As pessoas viam apenas seus interesses imediatos, guiadas pelo instinto natural que visa apenas a preservação da vida corporal, do acúmulo dos bens materiais, de garantir a própria subsistência, pessoal e genética. Para atingir esse objetivo imediato funcionava a lei do mais forte como fator de construção de hierarquias sociais, com seus critérios de inclusão (o próximo parente ou conhecido) e exclusão (o próximo desconhecido). Fator esse que iniciou com a existência da própria pessoa e que persiste ao longo do tempo até hoje, com a criação das grandes fortunas e poderosos em contraste com as grandes misérias e escravidão. Mesmo que a conquista científica e tecnológica tenha trazido um verniz ético as relações sociais, é inequívoca a percepção da lei do mais forte em pleno vigor entre nós. Tenho na minha experiência cotidiana a comprovação disso. Trabalho em um hospital universitário onde sou professor e sou considerado de classe média. Ao redor existe uma comunidade que sofre pela dificuldade de acesso aos recursos básicos de sobrevivência. Muitos se entregam ao tráfico e/ou consumo de drogas, a prostituição, a furtos. Todos nós, professores e alunos, entramos diariamente pelo portão do hospital para guardarmos nossos carros, que superlotam o estacionamento, após passar por montanhas de lixo que esses moradores sem educação colocam nesse local. Todos nós, professores e alunos, cumprimos nossas tarefas cotidianas com o intuito de garantir nossa sobrevivência na base do acúmulo da capital, passando pelo acúmulo do conhecimento acadêmico. As vezes lançamos um olhar caritativo a essas pessoas no sentido de facilitar um exame clínico, uma consulta médica, dar uma moedinha a uma criança ou idoso pastorador de carros. Tudo isso cumpre o objetivo imediato da sobrevivência do corpo e de meus descendentes.
Jesus veio há mais de 2000 anos para nos ensinar a existência de outro sentido para a vida, que não era esse tão fugaz e ilusório como as necessidades da existência material. Veio nos ensinar que possuímos um espírito eterno e que ele é educado ao longo das existências corporais, que um só corpo, uma só existência material, é insuficiente para aprendermos tudo que é necessário. Que devemos reconhecer e conter os impulsos instintivos de natureza egoísta que visam apenas os nossos interesses materiais, de forma implícita ou explícita. Que existe um Criador para toda a Natureza, que sua essência é o Amor e que é nessa essência que devemos sintonizar para criar e educar as virtudes da alma. Esse é o papel do “Bom Pastor” que Jesus representou frente as ovelhas perdidas no sentido existencial. Esclarecia que era a porta, o conhecimento, por onde as ovelhas passam, a verdade e a vida. O Bom Pastor dormia na porta, seu corpo servia de portão que protegia suas ovelhas, estava disposto a dar sua vida por elas, como aconteceu.
Da mesma forma que as ovelhas, os lobos também fazem parte do povo, são aquelas pessoas arraigadas aos impulsos instintivos, que deles não querem largar mão e que continuam a explorar o próximo, as ovelhas, em seu beneficio pessoal e imediatista.
Agora chega a minha mente uma pergunta: será que uma ovelha pode se tornar um pastor? Na minha condição de ovelha e obediente as instruções do Bom Pastor, às vezes sinto essa vontade de também cuidar de ovelhas, pois quando eu sigo a lição de amar ao próximo como a mim mesmo, e que tenho tanto cuidado de respeitar, sinto que estou assumindo a missão de um bom pastor.
Há cerca de 30 anos comecei a desenvolver uma ideia que não imaginava atingir as proporções que hoje tem em minha consciência. Mudou o meu paradigma de vida, conheci a existência do Pai primordial, de sua proteção e do que Ele espera de mim. Tudo isso em função da persistência de uma ideia que persegue a coerência racional.
Hoje tive contato com um texto escrito por Joanna de Ângelis/Divaldo Franco no livro “Messe de amor” que me fez refletir sobre isso. O texto tem o título de “Persistir na ideia” e diz assim: “Nenhuma ideia é, por si mesma, tão perfeita, que não precise de aprimoramento, nem tão imperfeita, que não possa ser melhorada.
“A moeda, que adquire medicamentos para a enfermidade, também passou pela mão de malfeitores.
“Muitas vezes, a ideia do bem chega ao homem tosca a abrutalhada, mas, depois de sofrer retoques valiosos, transforma-se em bênçãos para muitos.
“As pessoas que mudam de ideia frequentemente, quase nunca realizam qualquer coisa de valor.
“Para o sucesso de todo empreendimento, persistir na ideia é impositivo indispensável.
“Sem a perseverança que aprimora, as realizações precipitadas malogram, quase sempre e invariavelmente, deixando amarguras e desaires.
“Todas as ideias tem sempre algo de bom, quando as podemos conduzir em benefício de alguém.
“A labareda que arde é veículo da purificação, tanto quanto o lixo que tresanda putrefação é depósito de fertilidade.
“Não intentes a tarefa da evolução, nas linhas do Cristianismo, sob o impacto de ideias momentâneas...
“Há vinte séculos a do Cristo vem sacudindo a Terra sem lograr penetração integral no coração humano.
“No entanto Ele persiste, persuasivo e gentil, oferecendo o necessário para a transformação dos caracteres do homem, em face dos dispositivos da sua doutrina de amor.
“Tocado pelo convite da Vida Verdadeira, persiste na ideia de renovação interior, e empreende a batalha infatigável do bem de todos, removendo os obstáculos íntimos à tua ascenção.
“O fogo persiste, e devora florestas impenetráveis.
“A luz insiste, e desenvolve o embrião.
“O filete de água persevera, e dá origem ao rio caudaloso.
“O grão de trigo se afirma, e dele nasce o pão.
“A pedra trabalhada ressurge noutra expressão.
“O pântano drenado renasce com outra face.
“O deserto irrigado reaparece modificado.
“Insiste nas ideias superiores e remodela as perniciosas que te visitam a casa mental.
“Alça o pensamento a Jesus Cristo, o Sublime Idealizador, e deixa-te inspirar por Ele, plasmando em teu foro íntimo a incoercível força do Bem em forma de vida e alegria para ti mesmo.”
Vejo por experiência pessoal a verdade dessas sentenças. Percebo que a ideia original que chegou na minha mente veio em forma bruta que nunca imaginava que chegaria ao ponto que chegou. Mas a perseverança na sua essência, do amor incondicional com toda a justiça e coerência que eu pudesse aplicar, veio fazendo o aprimoramento do meu comportamento e a clareza do pensamento. Reconheço também que até hoje eu continuo a aperfeiçoar esse pensamento com a ajuda principal de minhas companheiras que decidem partilhar sua vida comigo, todas tocadas por esse convite da Vida Verdadeira, do Reino de Deus, que implica na ideia da renovação interior, na batalha infatigável do bem de todos, limpando de nossos corações todos os vestígios de egoísmo que levam à exclusão. Temos que insistir nas ideias superiores e remodelar aquelas perniciosas que ainda visitam nossa mente, quer sejam induzidas por outros, quer sejam provenientes do nosso próprio coração.
Ainda urge a persistência na ideia, de todos que decidem ser cidadãos desse tão bem explicado Reino de Deus, ensinado pelo Cristo.
Seguindo a inspiração de Ignácio de Loyola (1491-1556), o fundador da Companhia de Jesus, que criou esta Ordem para que seus princípios se tornassem realizáveis dentro do contexto missionário, observo também a necessidade de ser criado algo parecido para a viabilização do Amor Incondicional dentro dos relacionamentos e contribuir para a formatação Reino de Deus.
Ignácio através da Companhia de Jesus servia de grande socorro aos pobres e aos doentes, consolava os presos, ensinava as crianças e aos ignorantes a doutrina cristã, criou missões entre os canibais e os heréticos, constituiu igrejas e escolas, e edificou casas para órfãos e convertidos.
A Companhia do Reino deve servir de forte bússola de orientação a todos que queiram seguir com justiça e fraternidade os princípios do Amor Incondicional, exemplificados por Jesus e da essência divina. Deve servir de remédio aos sequelados do amor romântico, que construíram suas famílias na base da exclusão e que vivem suas vidas dentro da mentira e da hipocrisia. Todos os membros da Companhia do Reino devem seguir a vontade de Deus, obedecer Sua Lei que está escrita na consciência, acima de qualquer lei terrestre, preconceitos culturais ou interpretações filosóficas incoerentes.
Assim como na Companhia de Jesus, na Companhia do Reino deverá ser elaborado um estatuto a ser aprovado pela consciência de todos, onde a prática individual do amor incondicional seja observada no cotidiano e sem subterfúgios ou manobras corporativistas de quaisquer espécies; que seja dado ênfase ao principal argumento da aproximação do Reino dos Céus ao ambiente material, a partir da transformação do nosso próprio coração, com a limpeza dos sentimentos egoístas e se colocar como modelo mais apropriado em comparação com o amor romântico, na perspectiva da família universal.
Assim como na Companhia de Jesus seus membros passaram a ser conhecidos como jesuítas devido o foco de suas ações estar sobre a reprodução do comportamento de Jesus, na Companhia do Reino, apesar das ações dos seus membros também reproduzirem o comportamento de Jesus, mas o seu foco agora está dirigido para a construção do Reino de Deus e portanto a designação dos seus membros mais adequada seria de reinitas.
Claro, tudo que está colocado neste momento, são elocubrações da minha mente de forma solitária, que mesmo intuídas pelo pensamento divino, merece necessariamente a devida maturação dentro do processo coletivo das consciências, que da mesma forma que a minha, também são intuídas pela vontade de Deus.
Joanna de Ângelis em sua obra “Messe de Amor”, através de Divaldo Franco, orienta como devemos proceder na administração do corpo material para atingir os propósitos evolutivos do espírito:
“Para atender a função a que se destina, cada coisa necessita da adaptação que a disciplina impõe.
Como disciplina, entende-se o conjunto de deveres nascidos da ordem imposta ou consentida.
Mesmo a verdade, para chegar ao homem, é dosada em quotas que o vitalizam.
A luz solar que distende a vida sobre a Terra, é filtrada e medida para atender as necessidades previstas pelo Pai Celeste, sem causar danos.
A felicidade do homem decorre, pois, da disciplina que este se impõe.
Educação da vontade.
Correção dos atos.
Moderação da voz.
Domínio dos impulsos.
Ordem nas atividades e deveres, mantendo um alto padrão de respeito e moderação nas tarefas naturais.
Recorda, assim, a expressão do Mestre Jesus:
- Eu não vim destruir a Lei, mas dar-lhe cumprimento.”
A autora coloca com muita propriedade o que precisamos fazer para atingir a felicidade que almejamos, mesmo entando em fase tão inicial do nosso desenvolvimento evolutivo, principalmente na administração das necessidades do corpo que geralmente se confronta com as necessidades do espírito. Eu friso bem a frase inicial: “Para preencher a função a que se destina, cada coisa necessita da adaptação que a disciplina impõe.”
Desenvolvi ao longo da vida a compreensão que o amor romântico que é alicerçado nos instintos sexuais, deve estar a serviço do Amor Incondicional que é alicerçado na justiça e fraternidade. Percebo a força que esse amor romântico possui, principalmente quando está incendiado na forma da paixão, mas mesmo nesse nível, jamais o amor romântico pode ficar acima dos princípios do Amor Incondicional. E isso implica na imposição da disciplina e isso merece que repitamos o que Joanna de Ângelis orienta: Educação da vontade, correção dos atos, moderação da voz e domínio dos impulsos.