A temperatura no deserto, cada vez que chega próximo do fim da quarentena, parece que aumenta mais. Qualquer situação que eu procure sintonizar dentro das areias escaldantes do meu apartamento vazio, sinto a presença do divino chegar perto e me deixar sensibilizado.
Hoje pela manhã, ao me pesar como sempre faço, verifiquei que não atingi a marca dos 75 kg que estava previsto. Parou a balança marcando apenas 76 kg, justo. Faltava eu perder apenas 100 grama para ficar com 75,9 kg, portando dentro da faixa do esperado. Como faltava 15 minutos para ir ao trabalho, decidi que faria exercício até perder a 100 gramas.
Passei a correr no mesmo lugar, a técnica que eu mais utilizo para exercício dentro de casa, seguido de exercícios deitado para o abdome e para o tórax, pernas e braços. Vez por outra ia até a balança e verificava que continuava no mesmo ponto: 76 kg. Resolvi acelerar os movimentos da corrida no mesmo lugar e alternava com movimentos de polichinelo; lembrei também do refrão que eu pensava usar na maratona que eu participei há dois anos e passei a repeti-lo: “Deus é nosso Pai, Jesus é nosso Mestre!” A partir daí veio na mente a canção “Eu sei que tu me sondas” e como não sei a letra fiquei cantando apenas essa frase como se fosse um mantra.
Foi aí que o divino invadiu a minha alma. Acelerei os movimentos da corrida e já não sentia tanto cansaço. Deixei de cantar só o “mantra” e frases novas surgiam na minha mente que tentarei reproduzir aqui e agora, mas sei que não terá a beleza e força espiritual do que cantei e experimentei no momento:
“Eu sei que tu me sondas, Senhor
Entrai na minha alma, ilumina o coração
Vê onde está sujo e retira as impurezas
Eu sei que tu me sondas, Senhor
Eu quero que me sondes, Senhor
Vais até onde eu não posso
E tires todo o mal
Eu quero ficar limpo, Senhor
Eu quero estar limpo... Senhor!”
Foi mais ou menos assim, mas sei que palavras fogem agora da minha memória, mas naquele momento o conjunto do que eu cantava e sentia era encantador e revigorante; eu sentia as lágrimas correrem na face, mas sem sofrimento, e o meu corpo correndo na sala, mas sem sentir o cansaço.
Fui para a balança e vi que marcava 75,8 kg. Perdi 200 gramas. Já passava meia hora do meu compromisso de sair para o trabalho, mas acho que valeu a pena, mais essa experiência.
Então Pedro se lembrou da palavra que Jesus lhe tinha dito: “Antes que duas vezes cante o galo, você me negará três vezes.” E se pôs a chorar. (Marcos, 14:72).
A caminho do Getsêmani, Jesus havia previsto que Pedro o negaria. Mas o impetuoso Pedro havia negado veementemente essa possibilidade: “Ainda que todos se escandalizem de ti, eu, porém, nunca!” (Marcos, 14:29). E repetia com mais ardor: “Ainda que seja preciso morrer contigo, não te renegarei.” (Marcos 14:31).
Todos os quatro evangelistas registram a negação de Pedro. Todas as negativas têm lugar no pátio da casa do sumo sacerdote ou próximo dali.
Primeiro, uma das criadas do sumo sacerdote fixou os olhos em Pedro que se aquecia, e disse: ”Também tu estavas com Jesus de Nazaré.” Ele negou: “Não sei, nem compreendo o que dizes.” (Marcos, 14:66-68).
Segundo, a criada que o vira começou a dizer aos circunstantes: “Este faz parte do grupo deles.” Mas Pedro negou outra vez. (Marcos, 14:69-70).
Terceiro, um grupo de espectadores foi a Pedro e o desafiou diretamente dizendo: “Certamente tu és daqueles, pois és Galileu.” Então ele passou a praguejar e a jurar: “Não conheço esse homem de quem falais.” (Marcos, 14:70-71)
---------
Lembro do último domingo quando estava na praia com parentes e amigos, e me coloco no lugar de Pedro. Eu também neguei o Pai, talvez mais de três vezes. Não era porque alguém me acusava, mas a consciência lembrava que eu devia ser testemunha da vontade do Pai, cumprindo aquilo que Ele me determinara e eu me omitia com diversos motivos:
- Não vou desligar as músicas excitantes da turma para fazer preleções;
- Não vou interromper as piadinhas, conversas picantes e divertidas para falar das coisas sérias do Pai;
- Não vou agrupar todos que jogam bola, passeiam na praia, bebem cerveja, jogam dominó, peteca.. para falar de um Reino de Deus.
Não foi preciso apenas que um galo cantasse para eu ter a consciência da minha negação. Foi preciso mais! Foi preciso que Deus me colocasse sozinho na sala de trabalho, no momento que eu estava disposto a lhe relatar com orgulho tudo que acontecera, toda a ajuda incondicional que eu havia dado, com firmeza, a moça que precisava de ajuda, que Deus fez lembrar esse detalhe que até o momento passava despercebido na minha mente: “Tu não fostes testemunha de mim frente a teus parentes e amigos.” Pronto, caiu a ficha!!! Desabou na minha consciência toda a dimensão da minha omissão, da minha negação! Não consegui segurar o pranto!
Imaginei o que teria sentido Jesus com a negação de Pedro...
Imaginei o que eu sentiria se alguém que eu considerasse da família, que povoasse os meus pensamentos e que morasse em meu coração, chegasse a mim diretamente e dissesse: “Eu não sou da sua família!”
Acredito que se tal acontecesse, eu iria parar, pensar e acreditar que seria a mão de Deus usando seus instrumentos humanos para mostrar um pouco do que sente o coração divino com a negação!
Ontem fiquei arrasado, não pelos meus pecados já conhecidos, a gula e a preguiça, mas por um outro que vive em mim nas sombras do meu coração e que ontem teve chance de mostrar sua cara, e eu, vergonhosamente, capitulei frente a ele: a covardia. Hoje na presença de Deus, Ele me admoestou e chamou minha atenção para o fato que até então eu não tinha dado a devida importância. Deus me fez ver que eu tive vergonha dEle e consequentemente Ele teria vergonha de mim! Foi um choque! Eu que pensava que o meu relato no domingo iria ressaltar o que eu considero como ações corretas, o Pai mostrou que aminha covardia fez com que eu perdesse a chance de orientar com mais eficiência, sem tantas marcas de vaidade, todos os meus irmãos necessitados da luz da verdade, principalmente a moça que no momento era o foco da minha ajuda. Como ainda estou no deserto, senti que era um teste sutil, quando eu pensava enfrentar os demônios dentro do outro, dentro da moça que eu tento ajudar, mas que na verdade a luta maior seria enfrentar o demônio dentro de mim, com a sua máscara de covardia. Senti-me derrotado, acabrunhado na frente do Pai. Sei que se fosse aqui na Terra esse julgamento e feito por pessoas impiedosas, eu merecia ser apedrejado. Mas as mãos do Criador não têm esse tipo de punição, pelo contrário, Ele enviou o Seu filho muito amado com autoridade de perdoar os pecados, com uma condição: o arrependimento.
Então hoje, o Evangelho lembra aquela passagem onde o Cristo é solicitado para o julgamento da mulher flagrada em adultério; lembra que Ele desarmou os corações perversos com a lembrança que cada um dia pecados dentro de si e que não tinham autoridade para nenhum jogar a primeira pedra. Não precisou falar assim, bastou lembrar que poderia jogar a pedra quem não tivesse pecados. E cada um sabia que o Mestre sabia o que ia no coração de cada um. Todos foram embora.
Eu não tenho acusadores externos, ninguém ficou sabendo da minha covardia, do medo de defender os interesses de Deus frente aos interesses de Baco, Mamon... o máximo que puderam observar em mim foi uma estranha melancolia que não sabiam porque. Eu também na hora não sabia explicar, mas agora tudo está claro. Meu espírito estava envergonhado do que estava acontecendo, da minha inércia espiritual e esperava uma reação. Eu ainda lembrava de chamar todos para reunir e falar as coisas do espírito, do interesse de Jesus na sua missão na terra e o que espera de nós, eu que me considero engajado na Nova Ordem de Jesus... Mas nada disso foi suficiente para vencer a covardia de passar por fanático, de querer sempre falar sobre Deus até nas festas de aniversário, atrapalhar a cervejinha de alguns convidados, o deboche de outros... eu ficava pensando nisso e na inércia que estava mergulhado, então minha alma entrou em melancolia. Ninguém podia saber o motivo, ninguém podia me jogar pedras.
Mas, o Pai que tudo percebe me chamou no tribunal da consciência e fez-me ver meu pecado. Reconheci-o e pedi perdão. Ele lembrou o Seu filho e eu me lembrei de suas palavras para com a adúltera: VAIS E NÃO PEQUES MAIS!
As lágrimas pararam de correr e pude ver mais uma vez o brilho do dia; as lições de ontem, o perdão de hoje, a esperança do amanhã.
Eu já estava esperando por esse momento. Minha estada no deserto tinha que me levar necessariamente a isso. Quando estamos longe de tudo e de todos no mundo material, as forças transcendentais chegam perto de nós, tanto para o bem quanto para o mal. Eu já havia me deparado com as forças maléficas que dormitam dentro de mim e que ainda exercem grande força sobre o meu comportamento, sobre o controle do meu espírito, como é o caso da preguiça e da gula. Não falo mais da sexualidade, pois toda força que ela tem sobre mim ainda, eu a coloco a serviço do amor incondicional. Então o mal não tem esse canal dentro de mim para se expressar, pelo contrário, reforça o cumprimento da minha missão frente ao Pai. Também tive experiências maravilhosas da presença de Deus ao meu redor e dentro de mim, senti a erupção dos pensamentos divinos, histórias dignificantes, explosão de lágrimas e a sintonia do meu pensamento com os propósitos do Pai. Por mais que eu fique confuso com eles, que meus amigos e companheiros façam críticas severas, mas, na minha ignorância, não consigo perceber em nenhum momento reprovação do Pai. E o caso da moça que foi minha antiga paixão, que veio do interior necessitada de minha ajuda, foi a comprovação que o Pai queria ver das minhas intenções, convicções e ações. O Pai sabe que a energia do mal que produz a figura do Diabo, tem origem em nossos corações, na força do egoísmo que foi também criada por Deus para a sobrevivência do corpo material, mas que esquece o interesse do próximo, do interesse do Criador.
Até o momento eu estava tendo um comportamento exemplar. Acolhi a moça necessitada com solidariedade e profundo amor no coração, amor de essência incondicional, cristalina como a água pura. Um amor que abrangia os seus entes mais queridos, suas filhas, mãe, irmãs e principalmente o seu companheiro que por força do trabalho tem que estar constantemente ausente. Depois dos primeiros movimentos no sentido da ajuda necessária, que tive de acionar os meus contatos afetivos mais próximos e mais convenientes para me auxiliar nesse processo, a moça ficou internada no hospital psiquiátrico e a filha ficou aos cuidados de minha irmã. Toda a situação era monitorada tanto por mim quanto por meus afetos mais próximos, e cada um disposto a ajudar nas emergências que surgissem. Percebi com clareza o objetivo do Pai, vi naquele momento o germinar de uma semente da Família Universal, do modelo do Reino de Deus! Não existia em ninguém exigência de condições para a ajuda necessária, era o AMOR INCONDICIONAL em ação!
Então neste domingo o Pai permitiu que as circunstâncias se formassem para o embate entre mim e o Diabo, dessa vez não se manifestando dentro do meu comportamento, mas surgindo da pessoa próxima e amada, e que está sem a consciência do que está sofrendo, da real natureza do seu mal, mas exigindo de mim respostas coerentes com a vontade de Deus.
Eu a retirei pela manhã do Hospital para ela ir a festinha que organizamos de improviso para todos os nossos parentes que aniversariam neste mês, inclusive a sua filha que está sob a guarda da minha irmã. Percebi desde o início que a sua mente estava intoxicada por pensamentos negativos, de medo, raiva, ressentimentos, baixa-autoestima e que isso gerava comportamento constante de acusações e lamentações. Orientei ainda no caminho para que ela se esforçasse para substituir esses pensamentos negativos por outros mais positivos, não ligados aos problemas do passado, mas sim com as perspectivas do futuro, junto a todos que estavam ali dispostos a ajudar. Mas nada disso surtiu efeito, observei durante todo o dia, inclusive nos momentos mais significativos, do almoço coletivo, do corte do bolo onde sua filha era uma das que se incluía com toda a naturalidade, ela estava sempre ao redor de forma policialesca, reprovativa, crítica, ameaçadora... a energia do mal não se dissipava de sua mente, apesar de tanta expressão de alegria e solidariedade. Faltou uma coisa: o momento de reflexão espiritual, que agora estou vendo ter sido necessário, muito necessário!
O clímax do evento se deu no momento da volta. A moça não queria mais ir ao hospital e se agarrou com a filha pequena. Usava a inocência da garota para alimentar sua força negativa. Foi necessário o uso da força para a levar forçada ao hospital sob os seus protestos e choro da filha. Foi necessária essa ação drástica, para cortar o parasitismo das forças negativas sobre a inocência da filha e do potencial que existe em transformar o amor natural de mãe-filha em rejeição, como já acontece com a filha mais velha, que rejeita estar perto dela.
Foi levada dessa forma, forçada e sob protestos, para o hospital. Ela procurava levantar argumentos para me injuriar e minar minha autoridade de médico, naquele momento dramático, mas não conseguia encontrar nada consistente. Observei então o quanto foi importante eu me comportar com a dignidade do amor incondicional com ela mesmo nos momentos da paixão. Jamais ela foi usada, ou o marido foi traído, para os meus próprios desejos, pelo contrário, mesmo naquele momento, minhas ações eram para beneficiar os dois, pois sabia que a vontade dela era estar com um companheiro como aquele outro que ela escolhera. Entreguei a moça à enfermeira da noite com orientação de ser medicada. Espero que o remédio acalme a intensidade desses pensamentos maléficos e destrutivos que habitam em sua mente. Sei que não é o remédio que vai fazer eles se dissiparem, vai ser preciso muito amor e muita fé dosada com a firmeza necessária para não alimentar o mal de nenhuma forma.
Agora presto contas a Deus de meus atos e recebo dEle a aceitação, apenas com algumas advertências: “Por que você não reuniu todos os convidados para falar de mim? Por que você sentiu vergonha de se portar como um sacerdote frente as brincadeiras irônicas e cheias de sensualidade profana? Não sabes da tua responsabilidade frente a mim e principalmente frente aos teus irmãos que não tem chance de se encontrarem com pessoa como você? Temes se tornar um chato e um fanático por sempre falar de mim?”
Enquanto eu ouvia as palavras de advertência no fundo do meu coração e que eu sabia que era a pura verdade, as lágrimas caiam sem intervalos... percebia que este relato, que na minha mente iria provar a minha força frente ao demônio, terminou por demonstrar mais uma derrota minha, por um outro inimigo que ainda não percebia a sua força mas que está também dentro de mim: a covardia!
Peço ao Pai mais uma vez perdão por minhas fraquezas... e mais uma chance! Chance para não errar, chance para reconhecer meus adversários melhor do que eu reconheço os adversários que estão dentro do próximo...
Pai, dá-me a sabedoria necessária para conhecer e reconhecer! Dá-me coragem e energia para o enfrentamento com o Diabo que reside nas minhas fraquezas e medos! Dá-me, Pai, o que achas necessário para o que desejo ser, instrumento de Vossa vontade, já que minha ignorância pode me impedir de pedir aquilo que na verdade é necessário!
Este é o aspecto mais contraditório que eu encontro nos livros sagrados, principalmente a Bíblia. No Velho Testamento tem o exemplo de José que tinha um lugar de destaque no coração de seu pai e nos planos de Deus estava destinado a posição de supremacia. Mas teve que enfrentar a ira de seus irmãos, sem outro motivo a não ser o amor que ele sabia expressar sem participar de injustiças. No Novo Testamento tem o exemplo de Jesus a quem Deus destinou o lugar de planetário e que chegou na terra na condição de embaixador do amor. É o mesmo homem que iria ser odiado por suas criaturas, que iria sofrer tremendo ódio. Por que o coração humano odiou tanto a Cristo? Será que havia algo de errado com Ele? Certamente que não, pois em Cristo não havia qualquer traço de crueldade, violência, ironia, orgulho, arrogância, ou outra coisa que provocasse o ódio das pessoas. Em Cristo só havia amor. Enquanto outros faziam o mal, Ele só fazia o bem. Enquanto outros amaldiçoavam e escarneciam, de Sua boca só saíam palavras graciosas. Apesar de todos os atos de amor, das palavras de graça, das curas e milagres, o povo o recompensou com mal e ódio. De fato Ele podia exclamar: “Odiaram-me sem causa” (João 15:25).
Próximo de nossa contemporaneidade, temos dois exemplos marcantes: Gandhi e Luther King. O primeiro na Índia e o segundo nos Estados Unidos, ambos só falavam do amor e da não-violência, mas ambos foram assassinados pela expressão do ódio.
Tenho também comigo esse receio dramático e já passo por essas experiências a nível doméstico, de sofrer a força do ódio sobre mim, mesmo eu levando apenas o amor por onde vou. Chega ao ponto do amor que pessoas desenvolviam por mim se transformarem em ódio. Que poderoso feitiço é esse que nem o Mestre conseguiu evitar? Tenho somente uma explicação para esse fato. O amor que as pessoas desenvolvem não é o amor incondicional, a característica de Deus. Desenvolve um amor condicionado a qualquer aspecto da vida material, dos instintos. É o amor que a mãe tem por seu filho e condiciona a fazer a vontade dela e qualquer outra perspectiva diferente é capaz de desencadear o ódio; é o amor que uma pessoa tem por outra e que se transforma em característica romântica, que quer a exclusividade do relacionamento e qualquer outra emoção afetiva desenvolvida por outra pessoa é visto como sinal de traição e dispara de imediato os mecanismos do ódio. Sempre vamos encontrar nessa geração do ódio, a interferência do amor nos interesses materiais, individualistas, qualquer que seja a forma.
Para evitar que o amor atraia o ódio, não é tarefa do amante incondicional... é tarefa do amante condicional, ver quais são as condicionais do seu amor, verificar a natureza egoísta que geralmente estar por trás e combater os instintos que são os que os representa nas diversas formas de relacionamento. Cada um deve fazer essa introspecção para dentro do seu coração e retirar de forma lenta e dolorosa esses elementos. A esse trabalho se dá o nome de Reforma Íntima e é o maior procedimento que cada pessoa deve fazer para se capacitar a ser um cidadão do reino de Deus.