Surgiu outro evento que fez compreender que a auditoria não estava restrita somente ao Perdão. Uma das minhas companheiras sofreu ameaça no meio da rua, foi auxiliada por um vigia, mas entrou em crise emocional, tremores, náuseas, vômitos... tentou entrar em contato comigo, mas não conseguiu. Mandou uma mensagem que serviu como lamento: “você não me atendeu e eu só entro em contato com você quando é muito necessário”. Bem que eu tentei fazer o contato quando vi a chamada no meu celular, porém só fiz uma tentativa. Mas isso me levou a fazer um retrospecto do meu relacionamento com minhas companheiras, a base da confiança naquilo que eu defendo e pratico. Defendo a família ampliada onde as minhas companheiras mais íntimas fazem da estrutura mais interativa onde fatos dessa natureza devem ser de imediato compartilhados e desencadeado a rede de solidariedade por todos os membros, principalmente os mais próximos.
Verifiquei assim que estou falhando também nesse aspecto que é da maior importância para mim, pois faz parte da minha missão nesta fase da minha vida na terra. Defendo a inclusão de todas as pessoas dentro de uma rede de família ampliada, onde todas pessoas que dela participem sejam tratadas com respeito, justiça e igualdade. Sei que as minhas companheiras tem muita dificuldade em incorporar esses conceitos e os praticar, no entanto, eu como o propositor, com maior tempo de reflexão sobre a coerência racional e espiritual de sua aplicação, não posso a essa altura ter pruridos de varão da família nuclear. Tenho que deixar de lado a delicadeza de não causar constrangimento a quem está ao meu lado devido eu me comportar dentro dos critérios da inclusividade. Se alguém fica constrangida por eu me comportar dentro da inclusividade, é porque ainda não está preparada para fazer parte da minha caminhada, de ombrear comigo na jornada. Tenho que seguir em frente exibindo o comportamento que Deus colocou na minha consciência como o mais correto.
Então, esse foi mais um teste aplicado em mim e que não me sai dele à contento. Resta o consolo de que o descobri e que estou disposto a superá-lo, para ser digno da confiança de minhas companheiras em qualquer contexto, social ou particular. Peço ao Pai sabedoria para ser firme, mas sem perder a ternura, jamais!
Logo que declarei a minha superioridade no campo do perdão, inclusive com o merecimento de uma medalha de ouro caso houvesse uma competição nesse sentido, sou colocado em teste. Considero o evento que aconteceu como uma auditoria da espiritualidade naquilo que eu disse com tanta confiança.
Estava saindo do trabalho dirigindo meu carro novo, recém tirado da loja, quando paro no sinal e sou abalroado na traseira. Desligo o carro, desço com minha bata branca de médico e vou ver o que aconteceu. Era uma carroça cheia de lixo dirigida por dois meninos. Vejo que foi amassada a lataria. Pergunto cheio de raiva o que foi que aconteceu. O mais velho, por volta dos 14 anos, justifica que o burro é novo e ainda não está acostumado. Meus pensamentos incendiados pela raiva procuravam uma alternativa... não adiantava chamar os guardas de trânsito, aqueles meninos ou seus familiares não poderiam pagar o prejuízo; eu poderia causar algum prejuízo a eles também, cortar as correias do burro, rasgar os sacos do lixo... o ponto senso prevaleceu. Voltei para o carro ainda incendiado pela raiva e da impossibilidade de não ter podido fazer nada. Procurei acalmar os pensamentos e foi aí que chegou à memória do que eu escrevera há dois dias sobre o perdão. Avaliei de imediato que a medalha de ouro eu ainda não mereço. Em evento tão simples, sem grandes prejuízos materiais, sem nenhum dano físico, eu perco o controle de minhas emoções e deixo a raiva tomar conta dos meus pensamentos e comportamento, é porque eu tenho muito que aprender, inclusive não ser tão orgulhoso e deixar de lado a modéstia quando percebo facilidade em desenvolver determinada virtude. A medida que o tempo passava, essas reflexões tomavam conta dos meus pensamentos, os valores espirituais iam prevalecendo sobre os impulsos animais. Ainda fazia considerações sobre a situação difícil que a cidade atravessa, com lixo acumulado em todos os bairros, com buracos disseminados pelas ruas, impotência dos cidadãos em resolver a situação...
Agora, 24 horas depois de ter passado o evento, não sinto mais aquela raiva que incendiava os meus pensamentos. Vejo a ocorrência como mais um fato da vida, não percebo sentimentos negativos a me incomodar. Posso dizer que agora perdoei aquelas crianças, ao prefeito por permitir tanto tráfego de carroças pela cidade e até o burro por não ser mais calmo no trânsito. Mas agora sei que ainda estou muito distante da medalha de ouro.
“Examinai tudo: abraçai o que é bom. Guardai-vos de toda espécie de mal.” (1Ts 5,21-22). Este sábio conselho está num dos últimos livros da Bíblia: Tessalonicenses. Acredito que eu tenha seguido esse conselho desde cedo. Hoje, evito renegar qualquer coisa sem antes examinar. Isso eu faço em todos os campos da experiência humana. Com respeito aos relacionamentos, pode até ser que eu vá ao encontro de alguém de posse de alguma prevenção conforme fui avisado. Mas sempre deixo aberto a possibilidade do exame e decidir com os valores da consciência o que é bom e o que é ruim. No aspecto filosófico o exame se espalha pelo campo das teorias e concepções existente em todos os agrupamentos humanos. Aqui o exame também se torna complexo e emocional muitas vezes. Os grupos se dividem em sua forma de pensar e sentir nas diversas religiões, partidos políticos, times de futebol, etc. Daí o pensamento torna-se refém de estruturas rígidas de crenças, dogmas, tabus. O próprio grupo faz pressão para que o indivíduo não examine outras formas de pensar. Este é um dos maiores crimes que se comete contra a humanidade, tirando do indivíduo a sua liberdade de pensar, diagnosticar, julgar e decidir. Crime porque a verdade não é refém de nenhum grupo, por mais sábio ou místico que sejam os seus membros. Sempre existe alguma parcela de verdade no pensamento de qualquer grupo, de qualquer indivíduo.
Aplicando este conselho do Livro de I Tessalonicenses ao Livro de Gênese no caso de Abraão, Sara e Agar, já abordado no dia 17, podemos examinar o que é bom para cada um dos envolvidos. Vejo que tudo foi feito no interesse principal de Abraão e Sara, Agar ficou prejudicada, foi feito um mal a ela. Neste exame a minha consciência continua a seguir o conselho de Tessalonicenses, de me guardar de todo o mal. Por isso tenho que encontrar uma solução para que os interesses de Abraão e Sara se harmonizem com os interesses e bem estar de Agar. A solução que vejo nesse problema do passado, mas que também se encontra nos dias atuais, é transformar a família nuclear baseada no amor exclusivo, na família ampliada baseada no amor inclusivo. Isso, é claro, para aqueles que sintam essa necessidade que Abraão e Sara sentiram de sair dos critérios da família nuclear.
Hoje é o dia do perdão. Deixo de lado a modéstia afiro a medalha de ouro no meu peito. Se existe uma competição no mundo espiritual, de quem á mais capaz de perdoar, me considero o campeão. Sei que é um exagero, muitas outras pessoas que passaram por este mundo tem uma capacidade muito maior de perdão do que a minha, tendo como ícone dessa capacidade o exemplo de Jesus, que do alto do madeiro, com o corpo cravejado de torturas e a alma escarnecida pelos brutos, irradiava dos píncaros do sofrimento ondas de perdão pela massa ignorante. Mas vamos dizer que estou na competição da terceira divisão, como nos jogos de futebol. Então eu acredito que mereço minha medalha de ouro. Volto a atenção para minha consciência e não vejo nada ou ninguém que eu tenha ódio, raiva ou queira o mal. Todos que me tratam mal, que me ameaçam, que evitam ficar ao meu lado, não me recebem, que me agridem, maldizem ou injuriam, mesmo sabendo que tudo é injusto, perdoo de imediato ao agressores. A minha alma está limpa, a ação detergente do perdão limpa a cada momento que é preciso todas as câmeras do coração, muitas vezes com as lágrimas mudas do sofrimento.
Nesse ponto me congratulo com Deus e sei que Ele me observa com satisfação, por eu conseguir cumprir tão nobre ação. Isso traz também uma boa compensação para aquilo que faço ou deixo de fazer pela fraqueza no combate à preguiça e à gula. Da mesma forma que consigo, mesmo não sendo tão perfeito, a perdoar todos que me injuriam sem razão, o Pai, que é a total perfeição, com certeza estará me perdoando das minhas fraquezas.
Rogo por aqueles que, por ignorância, cometem tantas barbaridades comigo, e procuro nas oportunidades ensinar a verdade que tão sabiamente o Cristo nos educou. E peço perdão ao Pai também por estas palavras que exaltam o meu ego, pois mesmo sendo justo o que é dito, a modéstia deve prevalecer para que não prevaleça o orgulho.
Os muçulmanos contam a seguinte história: “Ibrahim (Abraão para os judeus e cristãos), era um grande profeta, pai de todos os crentes. Como sua velha esposa Sara não tinha filhos, ela convenceu o marido a conceber um filho com a jovem Agar, sua criada. Depois, por sua vez, Sara teve um filho. Ibrahim tinha, portanto, dois filhos: o de sua mulher Sara, que se chamava Isaac, e o de Agar, sua amante, que se chamava Ismael. Mas Sara, enciumada, pediu para que Agar fosse mandada embora, e Ibrahim acompanhou-a com Ismael ao deserto, onde a deixou sob a proteção do Todo-Poderoso. Os judeus se dizem filhos de Isaac, os mulçumanos de Ismael, e é por isso que Ibrahim (Abraão) é pai de todos.”
Interessante que os judeus e cristãos defendem que Deus quis experimentar a fé de Abraão e ordena que ele sacrifique seu filho único, Isaac. Considera assim, Isaac como o filho único, legítimo, enquanto o outro era o filho de uma criada, enfim, um bastardo. Essa não é uma fonte de exclusão que ainda hoje repercute em todo o mundo?
Essa situação é um bom motivo para evocarmos o Deus justo, amoroso e compassivo que conhecemos, defendemos e adoramos para ser o juiz dessa contenda.
Primeiro, apresentaremos os fatos: a) Abraão e Sara eram casados num sistema de família nuclear, com base no amor exclusivo; b) desejavam ter filhos, mas como não conseguiam a solução encontrada foi “usar os serviços da criada” para esse fim; c) depois de ter conseguido o seu próprio filho, Sara expulsa a criada e filho com a anuência de Abraão.
Segundo, colocamos as críticas: a) Se Abraão e Sara formavam uma família nuclear com base no amor exclusivo, não podiam por nenhum motivo quebrar esse pacto, muito menos por justificativas tão mundanas quanto de passar uma herança; b) ao quebrar o pacto usou a divina ferramenta do sexo que o Criador nos deu para, sem amor, atingir apenas o objetivo da procriação; c) Não teve consideração com os sentimentos e objetivos da criada e chegou ao auge da expulsão da comunidade.
Terceiro, colocamos as alternativas: a) Abraão desejando ou concordando com a possibilidade de gerar um filho fora do casamento tradicional, mas mantendo o amor como base em qualquer circunstância, deveria antes disso reformular as condições do casamento, retirar dele a condição de exclusividade e que o amor com outra pessoa seria na base da inclusão, essa pessoa deveria fazer parte de sua família, que não seria mais nuclear, seria ampliada; b) A pessoa que é incluída na família dessa forma, por imperativos sexuais ou românticos, depois dela ter sido sensibilizada e sentir em seu coração o afeto suficiente para a empreitada, essa pessoa deve ser respeitada e amada por todos os membros da família e da comunidade; c) Deve haver honestidade e coragem para enfrentar os impulsos de exclusão que continuarão a existir, tanto dentro de cada um, como dentro da família, como dentro da comunidade e proteger a integridade física, psicológica e espiritual da pessoa que também, corajosamente, resolveu entrar nesse paradigma tão diferente do cultural. Jamais chegar ao auge da expulsão, como aconteceu!
São esses argumentos que coloco para o Deus único de todos nós, detentor da sabedoria final de todas as coisas, para que Ele seja o juiz dessa situação e coloque o Seu veredicto dentro dos nossos corações, na nossa consciência; que sejamos capazes de aprender com os erros cometidos para evitá-los no futuro e ter coragem para fazer o que é certo e não prejudicar a ninguém.